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[Análise] To Leave: Vale a Pena?

Um título que o fará pensar em muita coisa...

por Hugo Bastos
[Análise] To Leave: Vale a Pena?

To Leave é, de antemão, um jogo de reflexões. O título da Freaky Creations consegue, de uma forma bastante singular, provocar no jogador um misto imenso de sentimentos e sensações como poucos jogos conseguem. E isso sem se esforçar muito.

Há uma gama de alegorias e referências. Há também muitas situações literais, que se traduzem como uma pancada forte no jogador. Harm (um nome bastante apropriado – significa “ferir” em tradução literal) acabou se entregando ao que há de mais sujo e baixo na existência humana. Afinal, é um homem que perdeu todas as esperanças.

Por outro lado, isso serviu para cimentar sua resolução na execução do seu plano, uma audaciosa empreitada, da qual ele não pretende voltar. Algo tão grandioso, que somente alguém com a determinação de Harm pode conceber. Igualmente, cabe ao jogador entender suas motivações e desejos, e a estrada que o levou até aquele ponto.

To Leave é um jogo pesado, com referências maduras ao lado mais obscuro da alma humana. Logo, é dotado de uma capacidade de trazer à tona diversos e complexos questionamentos. No final, os fins justificam sempre os meios? E quem somos nós para decidirmos o que deve ou não ser feito?

O preço da paz interior

Tudo o que Harm quer é encontrar a paz. Uma vida de desentendimentos consigo mesmo, de decepções e desilusões com o mundo o marcaram de forma permanente. Sendo assim, nada mais justo que ele possa alcançar a paz que tanto almeja.

No entanto, ele precisa primeiro executar Seu Plano. Uma tramoia que pode ser até mesmo entendido como cruel e macabro. Mas definitivamente é algo que somente ele, com sua determinação, poderá executar. E por mais que você possa questionar seus meios, os fins, para ele, se justificam.

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Harm está cansado. Ele quer encontrar apenas a paz. Mas precisa cumprir uma última missão. Fonte: To Leave

Harm deseja, usando uma tecnologia há muito esquecida, coletar as almas de todos os habitantes de seu mundo natal, com a ajuda de sua porta mágica, e envia-los ao paraíso. Mas a história não é facilmente entendida. É preciso que o jogador leia Harm, literalmente, por meio de seus diários, para saber o que realmente aconteceu.

E o que o levou a decidir trilhar esse caminho.

O mais curioso é que isso se traduz a todo tempo durante o desenrolar da narrativa. To Leave é exatamente sobre isso: colocar diversos pontos para que o jogador possa refletir sobre suas ações. Mas no fim, você vai continuar seguindo suas diretrizes. Seu Plano não pode ser interrompido.

Os caminhos que não quero percorrer

Para que Harm consiga alcançar seus objetivos, ele precisará enfrentar obstáculos. E neste ponto, a maestria das referências da Freaky Creations entra em cena. Como os próprios desenvolvedores já comentaram em sua página oficial, absolutamente tudo no jogo tem uma razão de estar ali.

Nem tudo estará escancarado. Algumas interpretações são bastante sutis. De repente, você é pego de surpresa por algo que honestamente não esperava. O jogo é muito bom em mostrar tais situações.

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Lidar com “pessoas” é a parte mais difícil e complicada do jogo. Fonte: To Leave

Falando em jogo, este não é fácil. Assim como a vida. É muito fácil se deixar levar pelas leviandades e facilidades do início (também, assim como a vida). Há uma curva de aprendizado, necessária para que você consiga transpor os obstáculos dos últimos capítulos da história.

Controlar Harm também exige perícia. Em sua porta voadora, você não pode tocar em nada, ou acaba voltando ao último checkpoint. Deve prosseguir sempre com cautela, mas também com rapidez, pois a porta é alimentada por sua alma. E a energia dela se esgota com o tempo.

Como se pode perceber, as alegorias e representações do título são, sempre, deliberadas. E isso é o que o torna tão profundo e instigante. Mesmo que pequenos bugs atrapalhem um pouco seu progresso.

Vozes e imagens que não saem da minha cabeça

Fora todas as representações que o jogo traz em sua jogabilidade, o título é imersivo da melhor forma possível. Você vai sentir o desespero e urgência de Harm em todas as suas formas. As sequências iniciais de sua “viagem” são fantásticas, e realmente mostram um indivíduo que já desceu ao completo fundo do poço.

O conjunto da trilha sonora com as sequências de jogabilidade se casam de forma magistral. Como exemplo, temos o desafio da sala Daemonion, um dos últimos do jogo. Talvez até o mais complicado. A sua construção passa a sensação de agitação, incomoda, desespera e traz um misto de desesperança e desistência.

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Os cenários de To Leave são feitos para que você possa se identificar com o protagonista, e sua vontade terrível de deixar esse lugar para sempre. Fonte: To Leave

As misturas de cores e sons, a pulsação do ambiente, as alegorias do jogo, tudo é frenético. Neste quesito, a Freaky Creations se supera e entrega um produto realmente imersivo e envolvente. Que, infelizmente, deixa um pouco a desejar no final simplista e direto.

Não que este seja ruim. Mas, pelo que é apresentado no conjunto da obra, esperava-se mais quando os créditos são mostrados.

To Leave em toda sua profundidade (e inacessibilidade)

Diante de tudo o que é apresentado, talvez o maior trunfo de To Leave seja exatamente sua ambientação. Para começar, sua história só é totalmente compreendida pelo jogador que dedicar certo tempo para ler os escritos do diário de Harm. Neste ponto, surge o primeiro grande desafio. O jogo não é localizado em nosso idioma.

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Os diários de Harm mostram um homem extremamente perturbado e dividido. Fonte: To Leave

Assim, aqueles que quiserem se imergir mais nos acontecimentos de Spiraling Stars (o local onde se passa o jogo) poderá se sentir prejudicado neste aspecto. Mas, talvez, este seja mais um desafio deliberado do jogo. Se você deseja algo, precisa estar disposto a superar os desafios que se põem entre você e seu objetivo.

Outro aspecto do título é retratar a cultura de civilizações antigas de forma interessante. Os templos mostrados em determinadas sequências, e as histórias narradas no diário de Harm, soam frequentemente bastante similares a civilizações verdadeiras. Até mesmo como uma forma da valorização da cultura do Equador, terra natal da Freaky Creations.

Já a personificação de Harm merece ainda mais comentários. Ele é um homem que sofreu grandes perdas em sua vida. Por isso, se entrega ao que há de pior e mais sujo na sociedade. Prostituição e drogas são apenas uma faísca do que se passou na vida deste ser.

Mas a demonstração de determinação em sua missão de “salvar” o seu mundo, aliado ao desespero que sempre o acompanha, é o que mais impacta em toda história. De sua porta barricada ao seu banheiro estrategicamente construído perto de um tempo, Harm mostra uma dicotomia permanente.

É um homem absurdamente ferido, e grande parte de suas dores foram auto-inflingidas. Suas decisões o moldaram assim. Ainda assim, ele é capaz de se resignar definitivamente, e buscar seu objetivo de forma totalmente cega. Dignando-se apenas a pedir “perdão” pelas sua atitudes.

Para seguir adiante…

Antes de mais nada, pelo conjunto da obra, To Leave é um jogo que instiga o mais profundo em seu ser. Seu conceito de fuga, ou de missão – depende do seu ponto de vista – é amparado por sua jogabilidade simplista e desafiadora, trilha sonora estonteante, e diversas interpretações para seus elementos.

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No entanto, é oferecido por um preço que pode afastar alguns, de início. O jogo é curto (com 3 a 4 horas, é possível termina-lo, mesmo que seja um iniciante). E mesmo o fato de possuir um troféu de platina não chega a ser uma adição, visto que quase todos os troféus são baseados na história – apenas dois para um final secreto.

Ainda assim, vale a pena recomenda-lo. Seus problemas não são suficientes para condenar o primeiro título de uma desenvolvedora equatoriana. E, certamente, não serão suficientes, também, para que você não jogue o jogo novamente. Ao menos uma três vezes, para entender tudo o que se passa.

Enfim, To Leave é uma obra psicológica que levanta diversos questionamentos. E o mais profundo deles acaba sendo como conseguir entender um mundo já tão morto como o de Harm. Ou o nosso.

Hugo Bastos
Hugo Bastos
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Jogando agora: Nada no momento.
Hugo Bastos e revisor do Meu PS4, apreciador de uma boa comida, e de platinas difíceis. E viciado em Rogue Legacy, OlliOlli2, Dead Cells, e não dispensa uma boa noite de jogatina.