O que torna jogos de terror realmente assustadores?
Um manual do medo para um belo Halloween gamer
Os jogos de terror sempre tiveram seu espaço nos games e o interesse de muitos jogadores, mas a atenção que recebem das produtoras e desenvolvedoras varia ao longo dos anos. Para a sorte dos fãs do medo, 2022 está sendo um ano especialmente importante para o gênero, com diversas novidades e remakes de grandes clássicos do horror sendo anunciados.
Resident Evil tem um remake do 4 a caminho e DLCs para o mais recente, Village. Dead Space finalmente teve o seu tão requisitado remake confirmado, e ainda neste ano o “sucessor espiritual” The Callisto Protocol será lançado. E agora, em outubro, Silent Hill finalmente voltou dos mortos com não apenas um, mas quatro novos anúncios – o que inclui o remake do clássico dos clássicos, Silent Hill 2.
Vamos aproveitar essa festança dos jogos de terror e o Halloween logo ali para entender melhor o que tanto nos assusta nesses jogos e o motivo para as pessoas gostarem de sentir esse medo e ainda pedirem mais!
A imersão dos jogos de terror
Nada melhor do que começar pelo começo. A famosa “imersão” de um jogo é a habilidade de nos levar para seu mundo e de sua história, fazer o jogador se sentir lá dentro, passando por aquelas experiências junto do protagonista ou até na pele dele.
A imersão pode ser mais ou menos importante dependendo do estilo do jogo, e nos games de terror ela certamente é indispensável. O medo pode ser traduzido como uma sensação de apreensão pelo perigo, e essa noção de perigo não pode ser conquistada sem um game imersivo.
São diversas as características que proporcionam a imersão num jogo, mas podemos destacar algumas das mais importantes. É possível dizer que a imersão resulta da ambientação – que passa pelos visuais e pela trilha sonora do jogo – e da identificação com os personagens e suas histórias.
Quando falamos dos visuais de um jogo, não estamos falando apenas dos gráficos em sua qualidade técnica. Trata-se também de toda a estética, o estilo dos personagens e dos monstros, a composição de um mundo que seja, ao mesmo tempo, interessante e assustador. Os corredores cheios de segredos e zumbis de Resident Evil, as duas faces da cidade de Silent Hill e os confinamentos metálicos habitados por necromorfos em Dead Space são algumas das imagens mais memoráveis do mundo dos jogos de terror.
Mas é nos sons que realmente mora o medo. A sonoplastia e a trilha sonora de um game são as responsáveis não apenas por ajudar no clima de suspense, mas também por tornar os acontecimentos mais acreditáveis e aumentar a imersão do jogador. Além disso, os sons ajudam muito a instigar nossa imaginação, principalmente quando ouvimos algo que ainda não podemos ver. E o medo, na verdade, mora na imaginação.
Existe uma citação famosamente atribuída a Eli Roth, diretor conhecido por filmes de terror como O Albergue e Canibais:
Se você não quiser sentir medo num filme de terror, não tampe seus olhos. Tampe seus ouvidos.
Não consegui encontrar onde e quando o diretor teria dito isso, então talvez a citação nem seja dele. Mas é uma frase que eu concordo, e já vi que funciona. Aliás, vale lembrar que Roth vai dirigir o filme de Borderlands.
A identificação
A identificação é um dos componentes que resulta na imersão num jogo e poderia estar no passo anterior deste manual. Só que é interessante fazer um trecho à parte sobre o assunto, devido à sua importância.
Identificação, neste contexto, se refere à nossa capacidade humana de nos identificarmos com outras pessoas em seus problemas e história de vida. É parte da nossa empatia, um mecanismo indispensável para a criação e manutenção de vínculos sociais e relacionamentos. Bons escritores e roteiristas usam essa nossa capacidade natural para fazer os jogadores se identificarem com pessoas que não existem.
Existem diversas maneiras de criar personagens com quem os jogadores podem se identificar, e é algo importante para a imersão de qualquer jogo, o que torna mais importante ainda em jogos de terror.
Títulos como Resident Evil e Silent Hill trazem protagonistas com histórias bem definidas. A premissa dos primeiros games da Capcom era a de levar pessoas bem treinadas para uma situação que nem eles poderiam estar preparados para enfrentar. Já os games clássicos da Konami mergulhavam no psicológico de seus protagonistas, virando seus maiores medos contra eles. Não é difícil para o jogador se imaginar nessas situações, mesmo sem ser um soldado ou um pai procurando pela filha.
Outros games como Dead Space, Amnesia e Outlast seguem a tradição de tentar colocar o jogador completamente no lugar do protagonista. O herói da aventura até tem uma história própria, mas ela age apenas como uma premissa para colocá-lo numa situação difícil, e depois a pessoa fica o mais apagada possível para o jogador se imaginar ali. Vale ressaltar que o Resident Evil 7, repaginando a fórmula da Capcom depois do controverso sexto game, também adotou a premissa do “protagonista vazio”.
O primeiro e o segundo passo do nosso manual, então, se referem a fazer o jogador se sentir dentro do game, com uma atmosfera sombria e misteriosa. E agora que está pronto o cenário, é chegada a hora de começar o terror de verdade.
O medo do desconhecido
Todo mundo sabe que uma das maiores fontes de medo para as pessoas – se não a maior de todas – é o desconhecido. Temos um temor instintivo do que não conhecemos, e os bons jogos de terror são aqueles que sabem brincar com esse suspense para manter o jogador apreensivo. E é por isso que este vai ser o maior trecho deste artigo.
Como mencionado antes, o medo mora na imaginação. Quando não sabemos o que vem a seguir, mas sabemos que se trata de um jogo de terror, onde nosso protagonista vive uma situação de perigo, nossa imaginação geralmente cria os piores cenários nos momentos de mistério.
É como entrar numa nova sala na mansão de Resident Evil e uma música de perigo aparecer para substituir aquele clássico violoncelo com seus graves melancólicos. Não sabemos ainda o que vai acontecer, mas já imaginamos que coisa boa não vem por aí.
Aproveitando o exemplo de Resident Evil, é interessante analisar como o jogo cria suspense com seu gameplay e cenário de maneira quase constante. Os primeiros jogos da franquia contavam com câmeras fixas, estrategicamente posicionadas. Os desenvolvedores levavam totalmente em conta o que o jogador poderia ver ou não, inclusive escondendo seus monstros em pontos cegos assim que se entra numa sala nova. O jogador ouve o barulho do inimigo, mas não o vê imediatamente.
Quando a série de jogos decidiu adotar uma câmera livre em Resident Evil 4, o ponto de vista é colocado imediatamente sobre o ombro do protagonista, e seu movimento é relativamente lento, quando comparado a outros jogos. Essa é mais uma decisão deliberada para limitar a noção que o jogador consegue ter dos cenários e onde estão os monstros, aumentando o suspense. Muitos jogos seguiram nessa linha mais tarde, o que inclui Dead Space e exemplos em primeira pessoa.
Também é interessante ressaltar Silent Hill nessa mecânica de “esconder o jogo” (com o perdão do trocadilho). O primeiro game foi lançado três anos depois da estreia de Resident Evil e não trazia uma câmera fixa como seu concorrente. Só que, por uma limitação de hardware do PS1, os devs na Konami precisaram colocar uma densa névoa em toda a cidade que esconde a maior parte dela – desafogando o console nas draw distances dos objetos.
Essa solução técnica acabou se mostrando um excelente recurso de gameplay, perfeitamente incorporada no lore por trás de Silent Hill e oferecendo uma sensação de claustrofobia e desconhecimento para o jogador. Vale destacar aqui também a mecânica do rádio, que faz barulho de estática quando um monstro se aproxima – uma jogada de mestre dos desenvolvedores. A mecânica parece lhe ajudar a não ser pego de surpresa, mas ao mesmo tempo amplia muito o suspense, porque o rádio não diz onde está o monstro ou quando ele vai atacar, só avisa ao jogador que ele está em perigo.
E, pra coroar sua maestria em “medo do desconhecido”, Silent Hill ainda introduz a icônica mudança de dimensão. Quando o jogador finalmente está se habituando ao cenário, dominando o layout do hospital ou da escola, ele ouve aquela maldita sirene e sabe que as coisas vão ficar piores – muito piores. O jogo fica muito mais escuro e o que parecia estar ficando familiar volta a ser desconhecido, e agora muito mais grotesco.
Antes de irmos para o próximo passo do manual do medo, vale ressaltar rapidamente como o medo do desconhecido se reflete também nos enredos dos jogos de terror. Todo game do gênero traz histórias misteriosas, que não explicam imediatamente ao jogador o que está acontecendo ou o porquê. Não é apenas o medo do que não vemos quando estamos jogando, é também essa confusão sobre o que se passa e os seus motivos que ajudam muito na construção do suspense.
O medo instintivo
O medo do que não conhecemos vem dos nossos instintos, que nada mais são do que respostas biológicas naturais do nosso organismo a estímulos externos. Anos de seleção natural criaram nas pessoas uma aversão natural a coisas que podem, de fato, representar perigos à nossa saúde.
Serpentes, insetos e aranhas são alguns exemplos de criaturas que causam uma apreensão imediata nas pessoas, porque muitas delas são peçonhentas e perigosas. Então o medo do desconhecido não seria o único instinto explorado pelos criadores de jogos de terror.
Quase todo game do gênero conta com pelo menos um monstro que lembra uma aranha, um inseto e/ou uma cobra. Dá pra fazer o “bingo dos monstros” em quase qualquer um dos jogos que foram citados neste artigo e em tantos outros. São criaturas que já causam uma aversão natural na maioria das pessoas, então ver uma versão delas ainda mais horripilante e – pra piorar – maior, costuma ser uma ótima fonte de horror.
O medo de doenças e infecções também aparece bastante nos games do gênero. Resident Evil famosamente tem um vírus como fonte de suas mutações terríveis e The Last of Us apresenta um fungo. A infecção com doenças mortais é uma realidade, destacada de maneira horrível por uma pandemia recente, então nosso medo é natural nesse sentido. Dentro do tema, muitas vezes os jogos de terror também expõem seus protagonistas a áreas imundas e nojentas, tentando causar asco no jogador. São coisas que evocam nosso receio natural de ficar doente.
E não poderíamos deixar de citar nosso medo de outras pessoas. Psicopatas, assassinos e mutantes não são raros em jogos de terror, e Outlast é um ótimo exemplo de um título recente que coloca o jogador para enfrentar humanos na maior parte do tempo. Colocamos aí também a possibilidade de misturar os medos, infectando os humanos e os transformando em monstros que parecem insetos, como faz Dead Space, por que não? Assim, além do medo que o jogador pode sentir da violência normal de que outras pessoas são capazes, os inimigos também mostram o tempo todo o que pode acontecer com ele se o protagonista não escapar dessa.
A subversão de valores
Já que falamos em humanos nos jogos de terror, vale mencionar a subversão de valores no nosso manual do medo. Não é como um medo instintivo, é mais um medo social, mas pode ser igualmente eficaz na construção de ambientes hostis e cenas horripilantes.
Neste caso, o jogo pega algo que geralmente é associado a pensamentos de tranquilidade, conforto e segurança e corrompe essa coisa, criando uma versão bizarra e assustadora.
Resident Evil 7 tem um exemplo bem emblemático neste caso: a cena da família, logo no início do jogo. É algo que certamente resultou de uma inspiração no Massacre da Serra Elétrica, e é tão eficaz no jogo quanto foi no filme. Um almoço em família, para a maioria das pessoas, traz lembranças nostálgicas e afetivas, só que o game transforma um evento desses em algo tenebroso, perigoso e imprevisível. É uma excelente maneira de apresentar os personagens do jogo, ao mesmo tempo em que constrói uma cena assustadora que deixa claro ao jogador o nível de perigo da situação em que se meteu.
E a Capcom mostra que gostou da fórmula da subversão e no game seguinte da série trouxe um dos monstros mais inesquecíveis dos últimos anos nos jogos de horror. Na casa Beneviento, o protagonista Ethan Winters é obrigado a enfrentar uma versão monstruosa de seu bebê, justamente quem ele busca salvar ao longo de toda a narrativa de Resident Evil Village. O choro de neném é algo que desperta reações naturais de empatia, de preocupação pelo ser indefeso… Só que, neste caso, quem está indefeso é o jogador, e o choro de um ser que deveria ser tão puro vem de algo horrível que nem deveria existir. De certa forma fica ainda pior quando ele dá risadinhas. E é essa subversão que causa aflição, agonia, medo.
Ainda neste tópico, não podemos deixar de falar da subversão do próprio protagonista do jogo, muito comum nos títulos que exploram o gênero do terror psicológico. E aqui fica inevitável falar de Silent Hill.
Games dessa “escola” trazem uma perspectiva mais profunda da história e das memórias de seus protagonistas, transformando seus medos, seus pesadelos e suas culpas em monstros mais literais para ele enfrentar. Isso não deixa de ser uma subversão de valores, do valor próprio no caso, do quanto você confia naquele protagonista, quanto se identifica com ele e até mesmo o quanto se projeta nele. Qual foi sua sensação ao descobrir os esqueletos no armário de James Sunderland?
Os sustos dos jogos de terror
Claro que não daria pra fazer todo esse manual de como deixar um jogo assustador sem passar pelos sustos – ou, como também são conhecidos, os “jump scares”. Pra não ficar dúvidas, estou falando daquele momento em que o jogo deixa tudo bem silencioso para cortar a calmaria com um som repentino, geralmente acompanhado do aparecimento de um monstro ou qualquer outra coisa meio “do nada” na tela.
Os sustos se tornaram tão frequentes em jogos de suspense ou terror que acabaram conquistando uma má fama com o tempo, ainda mais pelo número de vezes que são usados sem reais consequências no game. Assim como muitos filmes modernos de terror, especialmente voltados para um público mais jovem, vários jogos seguiram a mesma tendência de colocar sustos porque sim, apenas pelo susto. É o que acontece quando um personagem explora um porão escuro e alguém surge das sombras com um barulho extremamente alto, e esse alguém é revelado como sendo apenas um amigo ou qualquer NPC inofensivo. Os games da Supermassive fazem muito isso.
Mas os sustos não precisam ser sempre ruins, e certamente não são. Até nos jogos que fazem um uso exagerado deles, sempre temos alguns momentos com um “jump scare” bem aplicado.
Não é à toa, afinal, que eles ficaram populares. Os sustos são um recurso natural do medo do desconhecido, são como um clímax na forma de uma alta carga de adrenalina depois de vários minutos de suspense e apreensão. E isso pode ser bastante gratificante quando bem usado.
Dead Space é um ótimo exemplo de um game que adora fazer o jogador pular. Os sustos são muito eficazes neste título porque, na maior parte, não são vazios. Diversas das vezes em que o game lhe pega de surpresa, é realmente um monstro atacando, então o jogador aproveita o surto de adrenalina pra já enfrentar um adversário ou fugir. Combina com a dinâmica do game e acrescenta para a experiência.
Pessoalmente, prefiro quando os jogos usam os sustos com moderação, reservando para momentos importantes que os devs esperam que sejam memoráveis. Mas existem vários jogadores que gostam muito da experiência de passar o game todo apreensivos pelo próximo susto, mesmo quando ele não signifique muita coisa. Como sempre, cada um tem seu gosto, e nesses casos o importante é apenas que o game seja claro em sua proposta para sabermos que estilo estamos comprando.
Por que gostamos de sentir medo?
O medo é um mecanismo de defesa. É a resposta do corpo para uma situação potencialmente perigosa, preparando a pessoa para correr, se esconder ou até mesmo brigar.
Essa preparação acontece em nível subconsciente, é uma resposta da amígdala, uma parte mais primitiva e instintiva do nosso cérebro. Quando nos assustamos em um jogo de terror, a amígdala começa a enfrentar os sinais de perigo mais rápido do que o cérebro consciente consegue processar os acontecimentos.
Quando a parte mais racional da nossa mente finalmente “alcança” essa parte mais primitiva, vem uma sensação de alívio – é como se fosse a nossa cabeça falando pra si mesma “calma, é de mentirinha”. Aquela situação que parecia perigosa, então, se torna positiva, nos sentimos aliviados e no controle. Mas é claro que tudo isso acontece sem a gente racionalizar efetivamente o que se passa, apenas curtindo as sensações.
Isso explica, também, o pessoal que não gosta de coisas de terror. São pessoas em que o estímulo da amígdala durante a sensação de perigo é tão grande que a parte racional do cérebro não consegue “alcançar” a tempo, ficando então apenas o sentimento de desconforto que nunca é acompanhado pelo alívio. Do mesmo jeito, até um fã de terror pode passar por isso se ficar suficientemente assustado. Claro que fica mais difícil pra quem já é acostumado, mas pode acontecer.
E agora que você sabe a receitinha do medo, por que não listar aqui os jogos de terror que mais lhe assustaram na vida? Bora entrar no clima de Halloween!