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Por que God Hand seria “cancelado” nos dias atuais?

Lançado em 2006, título é mais uma propriedade cult da Capcom que morreu no tempo

por André Custodio
Por que God Hand seria

Em um cenário onde a indústria dos videogames vive sob os holofotes constantes de debates sobre inclusão, sensibilidade cultural e limites do humor, poucos títulos parecem tão vulneráveis à guilhotina do “cancelamento” quanto God Hand.

Lançado em 2006 pela Capcom e desenvolvido pela extinta Clover Studio sob a direção de Shinji Mikami — mente por trás de Resident Evil —, o jogo é um beat ‘em up que mistura ação frenética com uma comédia escrachada e descompromissada.

Quase duas décadas depois, sua abordagem irreverente e desbocada o coloca diretamente na mira das discussões que vêm esquentando a comunidade gamer em 2025. Mas o que, exatamente, tornaria God Hand um alvo nos dias de hoje?

Um humor que não envelheceu bem?

God Hand é um produto de seu tempo. O jogo segue Gene, um protagonista de cabelo branco e atitude debochada, que ganha o poder da “Mão de Deus” e parte para enfrentar demônios caricatos em um mundo que parece saído de um filme B dos anos 80.

A trama é simples: demônios querem dominar o mundo, e Gene, armado com socos, chutes e provocações, está no caminho deles. O que diferencia God Hand, no entanto, é seu tom.

O humor é escancaradamente brega, muitas vezes ofensivo, e não poupa ninguém — homens, mulheres, demônios, anões fantasiados de Super Sentai e até um gorila mascarado de lutador de lucha libre entram na dança da pancadaria e das piadas.

God Hand
Fonte: Reprodução

Nos anos 2000, essa mistura de absurdo e exagero era vista como uma sátira bem-humorada, um respiro em meio a jogos que se levavam muito a sério. Mas, em 2025, o que era “engraçado” para alguns pode ser interpretado como “problemático” por outros.

Cenas como Gene dando tapas nas nádegas de inimigas femininas ou enfrentando duplas de vilões com trejeitos estereotipados — como os gêmeos Gold e Silver — seriam alvos imediatos de críticas nas redes sociais.

Em uma era onde a representação e o respeito às minorias estão no centro das conversas, o humor sem filtros de God Hand dificilmente passaria despercebido.

O combate genial e o dilema da modernização

Se o humor é o calcanhar de Aquiles de God Hand, seu sistema de combate é o que o mantém vivo no coração dos fãs. Considerado por muitos um dos melhores exemplos de mecânicas beat ‘em up, o jogo permite customizar combos, ajustar a dificuldade dinamicamente com base no desempenho do jogador e oferece uma sensação de fluidez que poucos títulos da época alcançaram.

Esse legado técnico é o que faz jogadores pedirem, até hoje, um remake ou uma sequência — um desejo que o próprio Shinji Mikami já expressou em outras oportunidades por meio de entrevistas (via Wccftech).

Porém, adaptar God Hand para os padrões atuais não seria simples. Além de ajustes gráficos e mecânicos, a Capcom enfrentaria o desafio de decidir o que manter do espírito original. Se você tira o humor politicamente incorreto, ainda é God Hand? Ou seria só mais um jogo de ação qualquer?

O risco de “censurar” o jogo para agradar audiências modernas poderia alienar justamente os fãs que o transformaram em um clássico cult.

God Hand
Fonte: Reprodução

A discussão reflete debates recentes na comunidade gamer, como a polêmica em torno do relançamento de Dead Rising Deluxe Remaster em 2024, onde mecânicas e diálogos considerados “datados” foram suavizados, gerando reações mistas.

Para God Hand, o dilema é ainda mais delicado: o jogo é definido por sua irreverência. Sem ela, o que sobra?

A Capcom e o peso das expectativas

A Capcom, por sua vez, não é estranha a revisitar seu catálogo. Sucessos como os remakes de Resident Evil e o retorno de franquias como Devil May Cry mostram que a empresa sabe capitalizar sua história.

Em 2024, a publisher já sinalizava interesse em “despertar propriedades dormentes“, e God Hand frequentemente aparece em listas de desejos de fãs. No entanto, o clima cultural de 2025 — marcado por campanhas contra estereótipos em mídias interativas e pressão por narrativas mais inclusivas — pode fazer a Capcom hesitar.

God Hand
Fonte: Reprodução

Há também o fator comercial. God Hand vendeu apenas cerca de 60 mil cópias em 2006, um fracasso para os padrões da época. Embora tenha ganhado status de ‘cult’ anos depois, sua base de fãs é pequena comparada a gigantes como Street Fighter ou Monster Hunter. Investir em um título que já nasceu nichado, e que agora carrega o peso de ser “polêmico”, poderia ser um tiro no escuro.

God Hand seria um clássico preso no tempo?

Enquanto a comunidade gamer se divide entre os que defendem a preservação de obras como God Hand em sua forma original e os que pedem adaptações aos valores atuais, o jogo permanece um símbolo de uma era mais despreocupada — e, talvez, menos vigilante — dos videogames.

God Hand
Fonte: Reprodução

Sua mistura única de ação visceral e humor escrachado o torna uma relíquia adorada por alguns e um risco potencial para outros.

Se God Hand fosse relançado hoje, é quase certo que campanhas de boicote subiriam aos trending topics, acompanhadas de threads inflamadas e vídeos repletos de indignação nas redes sociais. Mas, para os fãs mais ardorosos, o jogo não precisa de redenção: ele é perfeito como é.

Resta saber se a Capcom terá coragem de trazer God Hand de volta — e, mais importante, se conseguirá navegar pelas águas turbulentas da cultura gamer contemporânea. Por enquanto, o destino da “Mão de Deus” segue incerto, mas uma coisa é clara: em 2025, socar demônios pode ser mais fácil do que enfrentar a opinião pública.