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“Não entender nada” de Death Stranding é parte da experiência

Desvendar os mistérios de Death Stranding ja são parte do "gameplay" do novo jogo de Hideo Kojima.

por Bruna Mattos

Ainda que se fale muito sobre Death Stranding, pouco se sabe (ou se entende) sobre o jogo. Hideo Kojima gosta de trabalhar com divulgações e trailers enigmáticos desde a época da série Metal Gear, o que coloca os fãs a postos para criarem teorias ou tentarem desvendar o que estaria por vir.

O mesmo está acontecendo com Death Stranding, mas o mistério se torna ainda maior quando percebemos que Kojima está trazendo um conceito novo para a indústria – algo que ainda não foi visto pela comunidade de jogadores mainstream.

Entender Death Stranding pode ir além de simplesmente desvendar sua trama. Presenciamos um estilo novo de gameplay ou até mesmo de uma experiência inédita? Quem sabe.

A maré da morte

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Primeiro trailer é repleto de ‘doideiras’

O título do game – Death Stranding (“maré da morte”, ou “arrojamento” ) – é um termo em inglês para quando as baleias encalham nas praias, geralmente em grupos. Ainda não se sabe exatamente o por quê destes animais, tão adaptados à navegação em alto mar, acabarem se perdendo em águas rasas e morrendo.

O que se acredita atualmente é que os encalhes de grupos inteiros de baleias são causados por laços sociais. A maioria das espécies fazem viagens migratórias em grupos como uma estratégia de sobrevivência, com uma ou mais baleias “dominantes” liderando o grupo. Por algum motivo, se os líderes ficam doentes ou confusos, todo o grupo pode ser afetado e acabar preso em uma maré baixa.

Não é a toa que diversos vídeos já mostraram uma estranha praia onde o protagonista, Sam (Norman Reedus) acorda confuso, e cercado de vários animais mortos, de forma semelhante às baleias encalhadas.

E por falar em “laços sociais” este é outro conceito importante por trás de Death Stranding.

Paus e cordas

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Mads Mikkelsen é um dos atores.

Enquanto a maioria dos jogos de videogame são centrados em conflitos, competitividade, derrotar um inimigo ou “ser o melhor”, o novo game de Hideo Kojima fala sobre “conexões”.

O desenvolvedor falou sobre isso quando contou à Variety sobre como convenceu Lindsay Wagner (a mulher biônica) a trabalhar com ele no jogo. Wagner é totalmente contrária a forma como videogames exibem violência, mas ela concordou em encontrar-se com Kojima ao perceber que, ainda que os jogos anteriores dele mostrassem confrontos violentos, tocavam em pontos pacifistas.

Como Kojima é fã de Wagner e queria muito tê-la no projeto, ele disse que teve uma longa reunião com a atriz, explicando alguns dos conceitos do jogo:

“No começo, o homem desenvolveu ferramentas, e a primeira delas foi o pau, usado para criar distância de algo que você não gostava, para gerar violência. O pau dos dias atuais é a arma de fogo. Em seguida, o homem desenvolveu a corda. A corda foi criada para puxar, aproximar coisas que você queria ter por perto. Todo o desenvolvimento da humanidade veio a partir dessas duas coisas”.

Kojima explicou para Wagner que, apesar de o jogo ter “paus”, o objetivo de Death Stranding é fazer o jogador usar as “cordas”.

Durante a E3 2018, o desenvolvedor falou que o combate será algo totalmente opcional (e até não recomendado) para o jogador:

“Óbvio, existirão inimigos e é possível usar seus poderes para destruí-los, mas o jogo também oferece inúmeras outras maneiras de avançar. E, também, o objetivo do jogo não é lutar contra seus inimigos e derrotá-los. O objetivo do jogo é reconectar o mundo. Várias pessoas estão interessadas em atirar, e as pessoas podem fazer isso no meu jogo. Porém, não é o recomendado, e os próprios jogadores perceberão isso, apesar de ter essa opção”.

Norman Reedus já havia falado sobre essas questões antes. Segundo o ator, Death Stranding é algo à frente do seu tempo:

“O conceito é estonteante, porque não é como conhecemos: ‘mate todo mundo e ganhe o jogo’, é muito mais uma questão de conexão. (…) É justamente o oposto, por isso está a frente de seu tempo. Há tantos elementos de mídias sociais e a ideia é precisamente essa, com tantos jogos… como parte de uma cultura dos millennials, estando sozinho em uma sala. Você acaba perdendo contato físico com as outras pessoas. O jogo é sobre restabelecer esses contatos físicos.”

Por que ninguém entende nada?

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Bebês parecem ser ‘elementos’ importantes.

É difícil entender exatamente o que se passa em Death Stranding, mas é fácil entender porque isso acontece.

Como Norman Reedus falou, o projeto é algo “a frente de seu tempo“. Estamos diante de algo genuinamente novo, e que boa parte do público realmente não conhece – ou melhor, não reconhece.

Estamos acostumados a ver jogos sobre “paus”, armas, conflitos, competições. É difícil pensar em jogo cujo conceito principal sejam “cordas”: unir ao invés de simplesmente “vencer” alguém ou alguma coisa. Ainda que muitos games tenham componentes cooperativos, ainda existe um inimigo comum a ser derrotado.

A ausência do confronto também fez com que boa parte do público não reconhecesse que o último trailer de Death Stranding tem, sim, trechos de gameplay. “Ah, mas é só o Norman Reedus andando de um lado para o outro com caixas nas costas e um bebê”. Sam é realmente alguém que “transporta coisas” e talvez essa seja a base do gameplay do jogo, por mais esquisito que isso possa parecer.

Quando Kojima criou Metal Gear em 1987 e popularizou o stealth como um gênero para os videogames, muita gente deve ter estranhado. A base da jogabilidade furtiva é justamente evitar o conflito, esconder-se. Uma ideia como essa surgir exatamente nos fim dos anos 80, quando John J. Rambo era um dos heróis mais populares dos cinemas, é um contrassenso enorme, mas aconteceu.

“A ideia de se esconder poderia ser revolucionária, eu pensei. No entanto, eu ainda achava que isso não venderia, por que não é algo muito heroico. Na época, jogos de heróis eram muito populares, então eu adicionei uma outra ideia” (…) Eu precisava criar mais tensão no jogador” (…) “Quando você é visto, vai atrair um monte de inimigos; eu queria que os jogadores aprendessem que essa era a regra do jogo”.

Criar algo novo não é algo inédito para Kojima. Em 1987 esconder-se em um videogame era algo difícil de imaginar. Já em 2018 é difícil imaginar quantos jogos não incorporaram conceitos de furtividade em suas mecânicas ou como um gameplay pode se basear em um cara carregando um bebê por aí.

Talvez Death Stranding não seja a primeira vez em que Kojima usa o conceito de unir pessoas. Em Metal Gear Solid V: The Phantom Pain, os jogadores podiam construir bases militares e ter sua própria bomba nuclear. No entanto, o game trazia uma missão “oculta” paralela: todos deveriam abrir mão de suas armas nucleares. Até o momento, a proeza não foi alcançada pela comunidade, apesar de a cena desse cenário de paz ter sido desbloqueada:

A importância do mistério

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O esconde-esconde faz parte da experiência.

Enquanto todos os segredos em torno de Death Stranding criam hype por parte dos fãs que acreditam no trabalho e na genialidade de Hideo Kojima, parte do público pode se distanciar e perder o interesse.

É normal que o desconhecido cause estranheza, indiferença ou até desprezo. É exatamente o que aconteceu, por exemplo, com os filmes “Mãe!” e “Aniquilação”. Ambos tocam em temas que não vão direto ao ponto e geram reações como “odiei, não entendi nada” por parte de quem não gostou ou não se identificou com essas obras.

Por outro lado, o desconhecido também promove posturas arrogantes como “não gostou por que não entendeu” – como se algumas coisas fossem “muito boas/inteligentes/difíceis para certas pessoas”. Parece aquele tipo de situação em que algumas pessoas olham para obras de arte e conseguem ver coisas como “a essência do ser humano” e outras só vêem “um monte de rabiscos“.

Talvez o objetivo de Kojima não seja atingir nenhum desses dois extremos: aquele que despreza o desconhecido ou o arrogante que acha que entende tudo. Ele quer fisgar quem quer descobrir o que está por trás “do monte de rabiscos” de Death Stranding. O desconhecido também é capaz de causar curiosidade. E é com isso que Kojima vem trabalhando.

A forma como Kojima trabalha e divulga seu trabalho também é diferente do que estamos acostumados a ver.

“Vivemos no tempo das redes sociais. Nesta época, as pessoas querem respostas imediatas, mas não somente respostas, elas querem saber o que vão sentir. Isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Esse é um jogo que eu devo gostar. Esse é um jogo que eu não devo gostar. As pessoas querem respostas para o que vão sentir”.

A industria de videogames vive um período de publicidade massiva. Somos inundados com milhares de trailers, vídeos de gameplays, comunidades de fãs e especialistas que analisam e destrincham cada detalhe de um jogo antes de seu lançamento. Geralmente, resta pouco para o público descobrir jogando.

Boa parte disso se deve ao fato de games serem caros não só para quem desenvolve, mas também para quem consome. Enquanto quem cria precisa “vender o peixe” da melhor forma possível para garantir lucros e o retornos financeiros para projetos que levam anos para tomar forma, o público precisa selecionar muito bem com o que gastar seu tempo e dinheiro. Muitas vezes compramos um game tendo certeza de que vamos gostar dele.

Kojima acredita que o marketing de videogames também faz com que o jogador perca boa parte da maior das oportunidades: a pura e simples experiência. Não entender Death Stranding logo de cara, portanto, faz parte de todo o processo:

“É como um problema de matemática, no qual saber a resposta não é importante. O importante é o processo de chegar à resposta”.

“O jogo já começou”

Kojima conhece muito bem sua comunidade de fãs. Não somente aqueles que apreciam Metal Gear por tantos anos, mas os que admiram seu trabalho como criador de games. E é exatamente por isso que a divulgação de Death Stranding também funciona desta forma misteriosa.

Quando o primeiro teaser do jogo foi divulgado, Kojima avisou que “o jogo já começou — um jogo de desvendar o mistério de que tipo de jogo Death Stranding se tornará”. 

O desenvolvedor sabe muito bem dialogar com sua própria comunidade, como deixou claro em um post recente no PlayStation Blog: “Há algumas respostas às perguntas que escondi no trailer de dois anos atrás. Essas são para vocês, os fãs imaginativos que perseguem pistas e amam um bom mistério. Mas as respostas aqui ainda são apenas parte do mistério. Nosso jogo ainda continua”.

A respostas estão lá. É difícil encontrá-las, mas tudo isso faz parte do jogo. Death Stranding nem foi lançado, mas já estamos jogando, sem fazer ideia. Não entregar respostas imediatas faz parte do gameplay de Hideo Kojima:

“Eu não quero estragar a parte mais divertida para os jogadores”.

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