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Entrevista com Mark Barlet, fundador e diretor executivo da AbleGamers Charity

Por mais de uma década, AbleGamers tem impulsionado os esforços inclusivos da indústria por meio de treinamento e consultoria enquanto conecta estúdios diretamente com jogadores que podem compartilhar suas experiências pessoais

por Lucas Ribeiro (BladerKoyotte)
Entrevista com Mark Barlet, fundador e diretor executivo da AbleGamers Charity

No final de julho, a instituição de caridade AbleGamers anunciou oficialmente seu estabelecimento no Brasil. Representada por Christian Bernauer, a afiliação brasileira é a primeira fora dos Estados Unidos da América e vem com o objetivo de tornar os jogos mais acessíveis para pessoas com deficiência (PcD) no país.

Com 17 anos de atuação, a AbleGamers desempenhou um papel fundamental no avanço da acessibilidade na indústria internacional dos jogos ao desenvolver equipamentos para PcD, além de realizar pesquisas e consultoria para diversos estúdios atualmente.

Considerando tamanha trajetória, entrevistei Mark Barlet, fundador e diretor executivo da AbleGamers Charity, para compreender o passado, presente e futuro da acessibilidade nos videogames através da perspectiva aprofundada de um de seus maiores representantes. Esta entrevista foi originalmente realizada para a produção do artigo A História da Acessibilidade com a importante contribuição da Naughty Dog, em inglês e traduzida diretamente para este texto.

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Painel da PlayStation Experience 2016 “Acessibilidade: Criando Jogos Para Todos Jogadores” (disponível no YouTube) – Da esquerda para a direita: Ian Hamilton (especialista em acessibilidade), Mark Barlet (AbleGamers), Tara Voelker (Gaikai – PlayStation Now), Josh Straub (D.A.G.E.R.S.) e Alex Neonakis (Naughty Dog).

Você fundou a AbleGamers em 2004 – nesse período, o quão presente era o tópico da acessibilidade entre a mídia e os jogadores?

Quando fundei a AbleGamers, ninguém de fora do ambiente acadêmico realmente tinha alguma conversa sobre como PcD eram mesmo consumidoras de videogames. Eu fui uma das primeiras pessoas a tornar a ideia da acessibilidade mais popular fazendo perguntas aos desenvolvedores, as pessoas criando os jogos. Mas até eu começar a fazer essas perguntas, o único lugar em que alguma conversa acontecia era nas universidades, em estudos de pesquisa. Estudos de pesquisa não mudam uma indústria, você deve ir e “chacoalhar algumas gaiolas” com as pessoas que podem mudar a indústria, e foi isso o que eu fiz.

Você lembra de algum jogo dessa época que era “acessível”?

Existiam jogos que eram “acidentalmente” acessíveis – o que quero dizer é que havia um período em que, por exemplo, a Eletronic Arts tinha práticas de desenvolvimento muito boas que fazia seus jogos serem aceitáveis no ponto de vista da acessibilidade, mas eles nunca tinham realmente recursos de acessibilidade, não eram criados pensando em incluir PcD. Eles apenas acabavam tropeçando na acessibilidade, mas a vasta maioria dos jogos, tudo o que era mais popular, não era de forma alguma acessível naquela época.

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Imagem: The Globe and Mail

Quando questionadas sobre acessibilidade em seus produtos, como as empresas de jogos costumavam responder?

No começo, era muito difícil ficar de frente com as pessoas que tomavam as decisões, empresas de jogos são como estrelas de cinema ou celebridades, existem camadas e camadas de proteção em volta das pessoas em posição de liderança que podem fazer essas mudanças. Então, a primeira coisa que tínhamos que fazer era descobrir como chegar até elas. Nós fizemos isso em 2009 quando fomos convidados para a Game Developers Conference, essa foi a primeira vez em que nós fomos, sabe, “permitidos a atravessar o portão”.

De forma geral, quando você perguntava a um desenvolvedor se ele já pensou em fazer seu jogo acessível a PcD, era assustador, era complicado como precisavam de um conhecimento íntimo sobre PcD e, francamente, a resposta era como “é, nós pensamos sobre isso”, mas era apenas isso.

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Imagem: The AbleGamers Charity

Uma das coisas que fizemos no começo que contribuiu para semear a ideia foi escrever um whitepaper (livro branco, um documento oficial) sobre envelhecimento nos jogos, pois quando eu perguntava “você já pensou como uma PcD jogaria o seu jogo?” a um desenvolvedor, era possível vê-lo ficar tenso e quase dizendo “oh meu deus”, mas se eu perguntasse “você já pensou como a sua avó jogaria o seu jogo?”, eles iriam rir e então começar a listar recursos para adicionar ao jogo porque nossas avós não conseguem ouvir muito bem ou enxergar muito bem. Isso me fez entender que o problema estava nas “lentes” nas quais nós pedíamos para os desenvolvedores olharem.

Nós amamos nossas avós, elas são carinhosas e fazem biscoitos. Perguntar isso não é chocante, ao contrário de falar diretamente sobre deficiências para quem não conhece essa realidade. Então, há essa necessidade de “educar” as pessoas sobre o que elas precisavam fazer e que PcD também são um mercado, elas gastam dinheiro em videogames.

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Max Payne 3 e L.A. Noire foram alguns dos primeiros jogos a receberem consultoria da AbleGamers | Imagem: Rockstar Games

Durante esses anos de trabalho, houve um momento específico que fez você dizer “nós finalmente estamos progredindo” com a AbleGamers e com a acessibilidade na indústria de jogos?

Sim, o que nós fizemos com o livro branco foi como “quebrar a noz” e nos permitiu começar a encontrar aliados. Eu acho que nós sentimos que estávamos realmente tendo progresso em 2009, quando nos encontramos com Alex Rigopulos, criador da série Rockband, e ele disse “Mark, você me mostrou nesses últimos dois anos que PcD querem jogar videogames – certo, o que eu preciso fazer?”, dessa forma, a situação foi de fazer com que as pessoas nos dessem atenção para alguém finalmente nos perguntando o que fazer. Esse foi um ponto de virada em que nós entendemos a “fórmula” para ter conversas conectivas e significantes com desenvolvedores.

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Alex Rigopulos | Imagem: VentureBeat

Os jogos indie tiveram um papel fundamental de reviver gêneros e criar tendências no início dos anos 2010. Eles tiveram alguma influência na acessibilidade?

Fico feliz que perguntou sobre isso porque, interessantemente, uma das outras coisas que vejo como um grande sucesso nessa trajetória foi que os jogos indie vieram até nós, pois eles queriam utilizar a acessibilidade como um diferencial no mercado, encontrando uma nova base de consumidores. Nós não fizemos isso, nós apoiamos isso, mas você deve observar o que acontecia na indústria como um todo. Se a AbleGamers tivesse surgido 5 anos mais tarde, talvez essa transição não teria acontecido. A área independente como um todo teve um grande sucesso em encontrar uma audiência. Existe uma imensidão de jogos disponíveis e cada desenvolvedor independente procura por seu nicho.

O quão importante Uncharted 4: A Thief’s End foi para o progresso da acessibilidade nos videogames?

Uncharted 4, em uma perspectiva histórica, foi um dos primeiros jogos Triple-A a ter um painel de acessibilidade nas opções. Eu vejo que a Naughty Dog se mostrou como o primeiro grande estúdio a pensar que isso era importante. Se você olhar para a trajetória deles, se você olha para The Last of Us Part II – que é uma experiência lindamente acessível – você vê que não foi simplesmente querer e fazer. Esse era um “ethos” (ideia, crença) que Sam Thompson, [produtor sênior] da Naughty Dog, sentiu que era essencial. Eu acho que o fato de ser uma empresa de jogos Triple-A investindo nesses esforços diz para o resto da indústria “nós pensamos que isso é importante”, então, os outros também deveriam se importar.

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Uncharted 4: A Thief’s End | Imagem: Sony Interactive Entertainment

Qual você acredita ser o maior desafio para a acessibilidade nos jogos hoje em dia?

Existem dois grandes desafios: ignorância, pois existem alguns estúdios que estão um tanto atrasados na jogada. Eu vejo que isso não é mais uma desculpa, pois se você está criando jogos, observa o tanto de acessibilidade que existe em outros e lança algo sem qualquer recurso, você vai receber muita repercussão negativa. Cyberpunk 2077 possui vários problemas, mas ele ignorou a acessibilidade de forma geral em seu lançamento e foi malvisto por isso.

E o outro grande desafio seria timeliness (tempo de desenvolvimento útil) – alguns jogos levam tantos anos para serem criados de modo que eles são lançados sem fazer um bom trabalho na acessibilidade mesmo com o estúdio querendo fazê-lo. Nos últimos 5 ou 6 anos, houve uma mudança radical no pensamento sobre acessibilidade, então decisões tiveram que ter sido tomadas não porque o estúdio queria, mas por causa desses timeliness que colocam você contra a parede e não lhe permitem tornar o jogo o mais acessível que você pode.

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Cyberpunk 2077 causou polêmica com sua mecânica de “braindance” por ser perigoso a pessoas com epilepsia | Imagem: CD Projekt

Por já ter um histórico com acessibilidade em Uncharted, [a Naughty Dog] começou a ter discussões sobre acessibilidade [para The Last of Us Part II] muito antes. Existem alguns jogos que serão lançados que estão “buscando ar” vendo que o mundo mudou, pois é muito mais caro e difícil incluir opções de acessibilidade no fim do desenvolvimento ao invés do começo.

Eu penso que o futuro da acessibilidade é muito, muito brilhante. Olhando para o trabalho que fazemos, para os estúdios com que eu interajo semanalmente… Eu estou interagindo com grandes estúdios pelo menos uma vez por mês, falando com as pessoas que estão construindo o futuro dos nossos jogos, eles estão genuinamente preocupados com a acessibilidade. Há jogos que começaram a serem feitos no ano passado, então não iremos jogá-los nos próximos 3 ou 4 anos, mas eu sei que eles serão acessíveis, pois eu estou tendo discussões hoje sobre títulos que nem mesmo foram nomeados ainda.

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The Last of Us Part II | Imagem: Sony Interactive Entertainment

Grande parte dos meus jogos favoritos são japoneses, mas vejo que a maioria deles é insuficiente em acessibilidade. O que podemos refletir sobre esse mercado?

Como eu disse, existem algumas áreas de resistência e o mercado japonês é uma delas. Há vários desafios por lá e boa parte deles são culturais, mas eu creio que estão ocorrendo mudanças. Quando jogos japoneses recebem um port para o mercado ocidental deixando a desejar em acessibilidade, eles são dilacerados. Jogadores com deficiência possuem voz no Twitter e Instagram e cobram posicionamento dessas empresas.

É interessante como a indústria mudou tanto nos últimos anos e a acessibilidade se tornou uma pauta maravilhosa de modo que está sobrepondo essas normas culturais. Eu vejo movimento nesse espaço. É lento, mas, por exemplo, se todo carro em uma estrada pode andar a 100 km/h e você ainda produz carros que só vão até 30 km/h, você vai começar a olhar em volta, com pessoas reclamando sobre seu carro, e perceber que algo está errado. Eu creio que seja isso que está acontecendo por lá.

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Resident Evil Village foi criticado pela ausência de recursos básicos de acessibilidade como o ajuste de campo de visão, importante para jogadores com cinetose | Imagem: Capcom

Muitas pessoas acham que opções de acessibilidade servem apenas àqueles que precisam. Qual é a sua visão sobre isso?

A Microsoft fez um levantamento sobre os programas do Office no Windows no início dos anos 2000 e constatou que 84% dos usuários usavam recursos que foram incluídos para acessibilidade. Se você está em um documento do Word e usa o zoom para enxergar melhor, você está usando um recurso de acessibilidade.

Eu sempre digo que, para uma PcD, é um recurso de acessibilidade, mas para alguém que não se identifica como PcD, é um recurso de preferência. “Eu prefiro isso”. Há várias pesquisas que mostram que, de fato, quando criamos softwares acessíveis, todos têm uma experiência melhor em qualquer coisa, pois você pode fazer alterações de acordo com seu gosto.

Na sua opinião, qual é a melhor forma de os jogadores apoiarem o avanço da acessibilidade?

Entender o que são opções de acessibilidade, apoiar PcD em sua comunidade – ajudando-as a entrar no mundo dos jogos e compartilhando o que elas fazem, elogiar as empresas nas redes sociais quando você descobrir que um jogo possui um recurso interessante e doar para organizações como a AbleGamers. Estamos dando recursos para PcD poderem jogar, fazendo pesquisas sobre como fazer jogos mais acessíveis e trabalhando com empresas para ajudar a criar experiências acessíveis.

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Imagem: The AbleGamers Charity

Com a chegada oficial da AbleGamers no Brasil, você gostaria de deixar uma mensagem para os jogadores brasileiros?

Como fundador da AbleGamers, estivemos trabalhando por alguns anos com o maravilhoso time do Brasil, Christian e seu time vieram tendo um entusiasmo fenomenal, é realmente empolgante ver essa ideia que tive em 2004 se espalhando ao redor do mundo, de fazer que videogames sejam acessíveis para PcD, incluindo eu mesmo – eu sou uma pessoa com deficiências, nós poderemos envelhecer jogando.

Para todos os jogadores brasileiros, há um time entusiasta com a vontade de permitir que todos possam experienciar esses jogos incríveis de hoje independentemente de qualquer condição. Eu não falo português, Christian tenta me ensinar um pouco, mas estou muito feliz que estamos crescendo e levando a felicidade de jogar ao máximo de pessoas possíveis.

Gostou da entrevista? Confira também a com Christian Bernauer, representante da AbleGamers Charity no Brasil.