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A História da Acessibilidade com a importante contribuição da Naughty Dog

Personalizar legendas, remapear comandos, desligar o motion blur... Todos nós utilizamos a acessibilidade o tempo todo. Mas o quão importante ela realmente é?

por Lucas Ribeiro (BladerKoyotte)
A História da Acessibilidade com a importante contribuição da Naughty Dog

Acessibilidade é um tópico pouquíssimo discutido no Brasil que, majoritariamente, recebe notoriedade apenas com notícias de repercussão internacional. Em consequência, sua complexa trajetória na indústria de videogames e suas diversas camadas não são bem conhecidas pelo público geral.

Por ser direcionado a pessoas com deficiência (abreviadas PcD), é compreensível que o conceito não capture a atenção de vários jogadores. No entanto, muitos de nós utilizamos opções de acessibilidade frequentemente para melhorar nossas experiências com o entretenimento sem nos darmos conta.

Acreditando na importância do tema, estudei o progresso da acessibilidade nos videogames e o apresentarei através da contribuição histórica da Naughty Dog, o estúdio Triple-A mais prestigiado pela inovação em tecnologias acessíveis atualmente.

Para enriquecer a difusão desse conhecimento com perspectivas íntimas sobre o mercado, tanto nacional quanto mundial, entrevistei Mark Barlet, fundador e diretor executivo da AbleGamers Charity, e Christian Bernauer, representante da instituição no Brasil. Com isso, veremos o quão importante a acessibilidade é para o bem-estar e socialização das PcD e que ela, sem dúvida alguma, é benéfica a todos.

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Mark Barlet e Christian Bernauer – A AbleGamers Charity é uma instituição de caridade focada em videogames para PcD que cria equipamentos personalizados, realiza pesquisas e fornece consultoria a estúdios de jogos

Um pouco de contexto

Apesar de inúmeras dificuldades e adiamentos, 2020 foi um ano incrível para a acessibilidade nos videogames. Grande parte dos principais lançamentos contaram com recursos fundamentais para permitir que qualquer pessoa, independentemente de suas limitações, aproveitasse o entretenimento de uma forma mais justa e congruente.

Em consequência desse movimento, a cerimônia The Game Awards criou a categoria “Inovação em Acessibilidade” para premiar os estúdios que se comprometem a levar suas tecnologias adiante, com seu primeiro vencedor sendo The Last of Us Part II.

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Os jogos que estrearam a categoria | Imagem: The Game Awards 2020

Com mais de 60 opções diferentes que atendem limitações visuais, auditivas e motoras, ele também recebeu prêmios de outras cerimônias, como dois da AbleGamers, e foi chamado de “o jogo mais acessível de todos os tempos” por Steve Saylor, criador de conteúdo cego conhecido por sua luta pela acessibilidade, que caiu em lágrimas ao perceber que poderia jogá-lo do início ao fim.

Uma enorme população

Apesar de a reação de Steve parecer incomum, não são poucas pessoas que compartilham esse sentimento. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo possuem algum tipo de deficiência em diferentes níveis. Ao longo dos anos, poucas pesquisas que identificam essa ampla população no mercado de videogames foram realizadas, no entanto, elas apresentam dados surpreendentes.

Em 2008, a publicadora PopCap Games – hoje integrada à Electronic Arts – realizou uma ampla pesquisa nos Estados Unidos da América e constatou que 20,5% dos jogadores casuais tinham alguma deficiência. Em dados mais recentes, a AbleGamers apurou, em conjunto com a Entertainment Software Association (ESA), que essas pessoas correspondem a mais de 46 milhões somente no país.

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75% dos Americanos possuem pelo menos um aparelho de videogame em casa. Há aproximadamente 46 milhões de jogadores com deficiências. | Imagem: ESA

Obviamente, esse número ao redor do mundo é muito maior e representa um grande mercado em potencial que há menos de 10 anos era pouquíssimo explorado – ou mesmo valorizado. Porém, ignorar essa realidade não apenas representa falhar em distribuir um produto para o maior público possível, mas também em reconhecer o quão importante videogames são para a vida dessas pessoas.

Especialmente após a pandemia de COVID-19, ficou mais que evidente que videogames são poderosas ferramentas de socialização e escapismo, não é à-toa que mais pessoas passaram a consumi-los nesse período. No entanto, para jogadores com deficiência, eles são ainda mais especiais, como afirma Mark Barlet.

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Imagem: The AbleGamers Charity

Muitas pessoas utilizam videogames como escapismo ou para viajar a locais que nem mesmo existem. Porém, para PcD, há um ‘valor adicionado’, pois muitas coisas não podem ocorrer com elas mesmo que existam na vida real.

A pesquisa da PopCap Games também apontou que jogadores com deficiência costumavam jogar com mais frequência e por mais tempo se comparado à totalidade de jogadores casuais. Não só isso: comparando aos outros consumidores, eles também consideravam o ato de jogar uma atividade benéfica e importante em suas vidas em maior proporção, contribuindo muito para o bem-estar. Esse sentimento se agravou com a necessidade do isolamento social.

Nas origens da causa

O primeiro grande movimento pela acessibilidade veio através da Nintendo America em 1986, três anos depois do lançamento do “Nintendinho”, o Nintendo Entertainment System ou Famicom. O NES Hands Free Controller foi criado após a empresa receber a ligação da mãe de uma jogadora que perdeu os movimentos das mãos após um grave acidente de carro. O controle permitia utilizar movimentos com a boca e a língua para mover personagens e sopros através de um canudo para ações com os botões A e B. Infelizmente, esse foi o primeiro e último hardware da Nintendo focado em acessibilidade. Segundo um analista da AbleGamers, de forma trágica, o Nintendo Switch – console mais recente da empresa – ignorou a acessibilidade completamente.

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Imagem: Google Arts & Culture

Dois anos antes, Jason Rubin e Andy Gavin, ambos adolescentes de 14 anos, fundavam a JAM Software, que anos depois foi renomeada para Naughty Dog. Desde o princípio, os dois queriam criar jogos que fossem diferentes do usual ou que fossem úteis de alguma forma. O primeiro deles foi criado para ajudar uma turma com dificuldades para aprender matemática, chamado Math Jam.

Após anos de vitórias, dificuldades e reviravoltas, a Naughty Dog passou a desenvolver Crash Bandicoot sob contrato com a Universal Interactive Studios em 1994. Este, lançado em 1996, foi um dos primeiros jogos de plataforma em 3D do mercado e ficou conhecido por sua dificuldade. Porém, apesar de quererem um jogo desafiador, a intenção de Jason e Andy não era torná-lo muito difícil – frustrar os jogadores era o que eles mais temiam.

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O visual de Crash foi feito para ser facilmente visível nas televisões. Por isso, devido ao grande destaque em relação ao cenário, a cor laranja foi escolhida | Imagem: Charles Zembillas

Balancear o primeiro Crash Bandicoot foi uma tarefa complicada. Como escrito em seu blog pessoal, Andy Gavin não ficou satisfeito com o resultado e Jason Rubin reconhecia a “superioridade” de Super Mario 64 – seu concorrente na época – nesse sentido. Essa insatisfação fez a equipe elaborar uma solução em Crash Bandicoot 2: Cortex Strikes Back.

Os programadores da Naughty Dog implementaram um sistema chamado Dynamic Difficulty Adjustment (DDA), que pode ser traduzido para “Ajuste Dinâmico de Dificuldade” e é popularmente conhecido por “dificuldade adaptativa”. Com ele, o jogo faz um balanço para facilitar as fases para jogadores que não conseguem avançar e mantém o desafio para os mais habilidosos, como dito por Jason.

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Crash Bandicoot 2 (1997) é considerado um dos melhores jogos de plataforma de todos os tempos | Imagem: Universal Interactive Studios

Nosso mantra tornou-se ajudar os jogadores menos habilidosos sem mudar o jogo para os melhores. Eventualmente, todos conseguiam terminá-lo. Bom jogador, mau jogador, todos adoravam Crash. Eles nunca perceberam, pois todos estavam jogando algo levemente diferente, equilibrado para suas necessidades específicas.

A mecânica – apesar de já terem existido similares em jogos arcade – foi considerada um marco para os jogos de ação em 3D. Consequentemente, ela retornou na próxima série de jogos do estúdio, Jak & Daxter, a última criada por Jason e Andy.

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Jak & Daxter, de 2001 (PlayStation 2) | Imagem: Sony Computer Entertainment

Oferecer ou não a opção de seleção de dificuldade fica a critério do objetivo de cada desenvolvedor, além de que existem jogos que são criados para serem propositalmente complexos, como os títulos mais recentes da FromSoftware (Demon’s Souls, Dark Souls, Bloodborne e Sekiro) – superar o desafio confeccionado por estes jogos é parte fundamental de suas experiências.

Por conta disso, sempre que um novo jogo do estúdio é lançado a discussão sobre incluir ou não um “modo fácil” para torná-los mais acessíveis emerge entre as comunidades e a mídia, gerando discussões acaloradas. No entanto, o importante fato muitas vezes esquecido nessas conversas é o de que acessibilidade não se trata apenas de dificuldade.

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Elden Ring, o próximo título da FromSoftware | Imagem: Bandai Namco Entertainment

O choque de realidade

Mesmo com a intenção de incluir o máximo de jogadores, efetivamente, opções de dificuldade ou o uso de seu ajuste dinâmico não passam muito de uma “acessibilidade embrionária”.

De forma contraditória, assim como muitos jogos da década de 1990 e início dos anos 2000, os Crash Bandicoot originais e Jak & Daxter não possuíam legendas. Isso só veio a mudar em Jak II: Renegade, de 2003, após jogadores com audição limitada reclamarem por não conseguirem terminar certas missões do primeiro.

Legendas e descrição de áudio foram elementos que se popularizaram nessa época em filmes e programas de televisão, porém, levou um bom tempo para se tornarem comuns em videogames. Geralmente, legendas eram utilizadas em RPGs com ênfase no texto ou em jogos que não recebiam vozes no idioma da região em que eram vendidos, como Resident Evil 4, que possui legendas em japonês por oferecer apenas vozes em inglês (mesmo sendo criado no Japão).

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Um dos jogos mais populares da geração PlayStation 2 e GameCube não recebeu legendas em sua versão ocidental | Imagem: Capcom

Segundo Mark Barlet, alguns jogos eram mais acessíveis que outros, mas nenhum oferecia opções que realmente possibilitavam uma PcD jogar sem frustrações.

Existiam jogos que eram ‘acidentalmente’ acessíveis, mas eles nunca tinham realmente recursos de acessibilidade, não eram criados pensando em incluir PcD. Eles apenas acabavam tropeçando na acessibilidade, mas a vasta maioria dos jogos, tudo o que era mais popular, não era de forma alguma acessível naquela época.

Os jogos da série Uncharted sempre ofereceram o nível de dificuldade “Muito Fácil”, também chamado de “Explorador”, para aqueles que preferem acompanhar a aventura de Nathan Drake de um modo mais cômodo. Uncharted 2 foi o jogo mais bem avaliado de 2009 e considerado por muitos um dos melhores jogos de todos os tempos. No ponto de vista de mercado, tudo isso parecia suficiente.

No entanto, um acontecimento decepcionante marcou para sempre a história da Naughty Dog e motivou a emergência de sua filosofia atual pela acessibilidade.

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Imagem: Sony Computer Entertainment

Em 2012, a Game Informer publicou o artigo Game Accessibility: What It Is And Why It Matters (Acessibilidade nos Jogos: o que é e por que ela importa). Ele foi escrito por Joshua Straub, jogador com paralisia cerebral que expressou sua frustração por não conseguir finalizar Uncharted 2 – um de seus jogos favoritos – por conta de um quick time event, um momento que exigia pressionar um botão repetidamente para abrir duas portas, próximo à reta final. A paralisia cerebral provoca o atraso dos músculos e Josh não pode fazer esses movimentos sozinho.

… fui forçado a encarar a ideia de que gastei 60 dólares em um jogo, avancei a maior parte sem ajuda e agora dependo de outra pessoa para passar desse ponto. Literalmente duas pequenas sequências, abrir duas pequenas portas fizeram o jogo inacessível. Para mim, acessibilidade não é uma palavra vazia – é uma parte da minha vida.

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Imagem: PlayStation Experience 2016

Essa situação o motivou a criar o D.A.G.E.R.S. (Disabled Acessibility for Gaming Entertainment Rating System), um blog que avalia de acordo com critérios específicos o quão acessíveis são os videogames, também realizando atualmente consultoria para estúdios. Mas ele não parou por aí.

Josh decidiu entrar em contato com a designer de Interface de Usuário da Naughty Dog, Alexandria Neonakis. Ao se encontrarem na Game Developers Conference 2014 (GDC), ela se comoveu com a história e ficou intrigada com o fato de uma pequena ação poder inviabilizar uma experiência para várias pessoas. Então, ela comunicou o ocorrido a Neil Druckmann e Bruce Straley, diretores de Uncharted 4: A Thief’s End, que decidiram investir em soluções para torná-lo mais acessível.

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Diferença da opção “Botão pressionado várias vezes” em Uncharted 4: A Thief’s End (PlayStation 4)

A partir daí, seguindo o conselho de Josh, foi introduzida a opção de segurar o botão ao invés de pressioná-lo repetidamente em quick time events para interagir com objetos na história e executar ações no combate. Felizmente, resolver esse problema deu a oportunidade para fazer ainda mais.

A implementação de recursos de acessibilidade tornou-se uma grande preocupação para Emilia Schatz, game designer chefe do estúdio. Em sua visão, é necessário um alto grau de proficiência para o uso simultâneo dos dois analógicos em jogos de ação como Uncharted, o que o inviabiliza a pessoas com deficiência. Por isso, Emilia dedicou-se a tornar Uncharted 4 jogável com apenas uma mão, desenvolvendo um sistema de câmera automática e mira travada, além de permitir alternar as funções de botões, gatilhos e analógicos.

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Emilia Schatz, Josh Straub e Alexandria Neonakis em uma apresentação na GAConf 2017

Após várias sessões de testes com PcD, os recursos de acessibilidade do jogo se provaram muito satisfatórios. De fato, qualquer pessoa pode jogar com uma mão e sem a necessidade de realizar movimentos muito agressivos. Eu mesmo testei as opções antes de escrever este artigo e fiquei surpreso com o quão funcionais elas são.

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Recurso de “Mira travada” em Uncharted 4: A Thief’s End (PlayStation 4)

Houve outra importante mudança, mas dessa vez no modo multiplayer. Andres Ortiz Suarez precisava exercer sua função como programador de interface, mas estava tendo dificuldades para identificar os diferentes times de Uncharted, tradicionalmente verde e vermelho. A questão era que ele é daltônico, não podendo diferenciar as duas cores. Ao perguntar se podia alterar as cores para azul e vermelho, ninguém foi contrário à decisão. Esse pequeno detalhe impedia daltônicos de jogarem o modo multiplayer sem complicações por anos.

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Diferença entre os times em Uncharted 4: A Thief’s End (PlayStation 4)

No total, foram incluídas 37 opções diferentes que são consideradas elementos de acessibilidade. Para facilitar o encontro e o uso dos principais recursos, foi criado um painel específico para acessibilidade no menu de opções.

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Painel de acessibilidade em Uncharted 4: A Thief’s End (PlayStation 4)

Segundo a página History Of Adaptive Tech da AbleGamers, Uncharted 4 “revolucionou as opções de acessibilidade e como elas são apresentadas à comunidade” ao ser um dos primeiros jogos Triple-A a ter um painel dedicado a ela. Esse foi um ato simbólico significante para o mercado, de acordo com Mark Barlet.

Eu vejo que a Naughty Dog se mostrou como o primeiro grande estúdio a pensar que isso era importante. Se você olhar para a trajetória do estúdio, se você olha para The Last of Us Part II – que é uma experiência lindamente acessível – você vê que não foi simplesmente querer e fazer. Esse era um ‘ethos’ (ideia, crença) que Sam Thompson sentiu que era essencial.

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Sam Thompson, produtor sênior da Naughty Dog (desde 1997) e da SIE World Wide Studios que promoveu uma nova fase de acessibilidade à PlayStation

Em dezembro de 2016, pela primeira vez, foi realizado um painel focado em acessibilidade na PlayStation Experience 2016 com a participação de Mark Barlet, Josh Straub e Alexandria Neonakis. Durante o evento, Josh expressou que esse painel foi o maior avanço na história da acessibilidade desde que ela começou.

Seis anos atrás, você não podia implorar para um desenvolvedor fazer seu jogo acessível. Mas agora, estamos tendo essa discussão com o aval de um dos maiores nomes dos videogames. E isso vai levar a indústria adiante, pois a Sony está levando isso a sério e esperamos que outros desenvolvedores também levem.

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Painel da PlayStation Experience 2016 “Acessibilidade: Criando Jogos Para Todos Jogadores” (disponível no YouTube) – Da esquerda para a direita: Ian Hamilton (especialista em acessibilidade), Mark Barlet (AbleGamers), Tara Voelker (Gaikai – PlayStation Now), Josh Straub (D.A.G.E.R.S.) e Alex Neonakis (Naughty Dog).

Aquecendo os motores

No começo da geração PlayStation 4 e Xbox One (2013), os jogos mais populares do mercado não iam muito além de oferecer um modo para daltônicos, isso quando ofereciam. Títulos como XCOM 2 (2016) que utilizavam sistemas de turnos e MMORPGs eram elogiados por PcD por terem um ritmo mais cadenciado. A possibilidade de remapear comandos ou alterar esquemas de controle era recorrente no PC, mas não era tão comum em versões de console.

Após 2016, comparado aos anos anteriores, a acessibilidade nos games viu um crescimento substancial. O tópico passou a ser abordado com maior frequência na mídia e em eventos e cada vez mais estúdios abraçaram a causa. Comunidades, criadores de conteúdo e profissionais PcD passaram a ser vistos após anos de omissão.

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A Insomniac Games consultou o D.A.G.E.R.S. para Marvel’s Spider-Man (2018) | Imagem: Sony Interactive Entertainment

Phil Spencer, chefe da divisão Xbox, elogiou a Naughty Dog por dar importância ao tópico com a iniciativa de Uncharted 4. Gears of War 4, da Xbox Game Studios – também de 2016, foi descrito como decepcionante em acessibilidade pela análise do D.A.G.E.R.S., porém, anos depois, Gears 5 não apenas resolveu os problemas do antecessor como também elevou os recursos de acessibilidade com uma qualidade exemplar para 2019. Inclusive, é claro, a Microsoft lançou o Controle Adaptável de Xbox em 2018, um importantíssimo avanço que contou com a colaboração da AbleGamers e foi introduzido ao Brasil com o apoio da equipe de Christian Bernauer.

Jogadores com deficiência acabavam abrindo mão do videogame por desconhecer as soluções que já existem e hoje, controles adaptados e opções de acessibilidade em jogos são cada vez mais divulgadas.

Porém, ainda há grandes desafios que precisam ser superados. Segundo Mark Barlet, existem estúdios resistentes à implementação desses recursos mesmo com ciência de que eles são um novo padrão de qualidade na indústria.

Eu vejo que [ignorância] não é mais uma desculpa, pois se você está criando jogos, observa o tanto de acessibilidade que existe em outros e lança algo sem qualquer recurso, você vai receber muita repercussão negativa.

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Por conta de um desenvolvimento conturbado e apressado, Cyberpunk 2077 cometeu deslizes em acessibilidade mesmo oferecendo algumas opções | Imagem: CD Projekt

Além disso, ele destacou que o tempo é um dos maiores obstáculos para os jogos se tornarem acessíveis, pois, geralmente, todo o foco da produção é direcionado ao jogo em si, não dando espaço para implementar esses recursos mesmo com o desejo da equipe. Por conta disso, a iniciativa de incluí- los ainda na fase inicial do desenvolvimento é fundamental.

Existem alguns jogos que serão lançados que estão ‘buscando ar’ vendo que o mundo mudou, pois é muito mais caro e difícil incluir opções de acessibilidade no fim do desenvolvimento ao invés do começo.

Essa foi a chave do sucesso da acessibilidade em The Last of Us Part II. Logo no início do desenvolvimento, a equipe considerou a fundação dos elementos aplicados em Uncharted e buscou levá-los ao próximo nível. Apesar de tudo, ainda havia muito o que fazer para tornar a experiência totalmente acessível, por exemplo, a cegos e surdos. Dessa vez, os trabalhos com testes e consultoria foram muito mais frequentes, se estendendo até o final do desenvolvimento do jogo.

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Recurso de “Exibição em Alto Contraste” em The Last of Us Part II (PlayStation 4)

Uma das principais opções de acessibilidade de The Last of Us Part II é a exibição em alto contraste. Ela foi inspirada pela “Visão de Ladrão” de Uncharted 4, que não é mostrada no painel de acessibilidade por se tratar de um dos filtros que são desbloqueados ao completar a história. Após receber relatos muito positivos de jogadores com problemas de visão, a Naughty Dog o implementou como um recurso de acessibilidade visual em The Last of Us Part II. Não apenas isso, como também o modo “Câmera Lenta” – outro elemento desbloqueado ao finalizar Uncharted 4, foi incluído como opção de combate.

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Filtro “Visão do Ladrão” em Uncharted 4: A Thief’s End (PlayStation 4)

Existem muitos detalhes interessantes sobre o desenvolvimento das tecnologias acessíveis de The Last of Us Part II que podem gerar inúmeros parágrafos de contemplação. Durante meu playthrough, utilizei algumas opções que considerei relevantes para a minha preferência.

Segurar o botão ao invés de pressioná-lo várias vezes para interagir com objetos da história, coletar os itens automaticamente sem pressionar triângulo toda vez, reduzir o desfoque de movimento, mudar o campo de visão… Todos eles, recursos de acessibilidade que melhoraram muito a minha experiência, sem prejudicar o excelente desafio que tive na dificuldade “Sobrevivente”, a mais elevada do jogo em seu lançamento.

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Imagem: Sony Interactive Entertainment

Talvez, outros milhares de jogadores também tenham feito o mesmo, especialmente com o uso e personalização de legendas que é o elemento de acessibilidade mais popular. Mas não se engane: comprovadamente, uma quantidade muito expressiva de usuários reflete esse comportamento. “Há várias pesquisas que mostram que, de fato, quando criamos softwares acessíveis, todos têm uma experiência melhor em qualquer coisa, pois você pode fazer alterações de acordo com seu gosto.”, diz Mark Barlet.

Em maio de 2021, a Naughty Dog divulgou dados gerais sobre Uncharted 4 em seu Twitter mostrando que, dos 37 milhões de jogadores, 9.5 milhões utilizaram opções de acessibilidade.

Apesar do caráter preferencial da acessibilidade, não podemos esquecer que, acima de tudo, somos humanos. Podemos ter qualquer órgão ou membro do nosso corpo comprometido por algum infortúnio da vida. Como conta Christian, deficiência é uma questão natural, pois todo ser humano desenvolve limitações diferentes e muitas vezes imprevisíveis com o passar dos anos.

Acessibilidade é um assunto que diz respeito a todos nós. Qualquer um que viver bastante vai acabar desenvolvendo algum tipo de deficiência. É natural chegarmos aos 90 anos de idade com algum grau de perda de capacidade de visão, audição, motora ou cognitiva.

Uma nova era de otimismo

Em 2021, outros estúdios como o da Insomniac Games continuam se dedicando para aplicar recursos de acessibilidade cada vez melhores. Até mesmo títulos já lançados estão recebendo atualizações, seja atendendo a pedidos ou reconhecendo necessidades. Control adicionou via update um modo de assistência, permitindo ajustar atributos da personagem e habilitar mira automática, derrotar inimigos com um tiro e até imortalidade.

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Ratchet & Clank: Em Uma Outra Dimensão (PlayStation 5), um dos jogos mais acessíveis de 2021 | Imagem: Sony Interactive Entertainment

Em 2020, a AbleGamers certificou 113 desenvolvedores como praticantes da acessibilidade nos videogames, especialistas de vários estúdios Triple-A determinados a levarem essas tecnologias adiante. Mark Barlet expressou um grande otimismo baseado na trajetória construída até então:

Eu penso que o futuro da acessibilidade é muito, muito brilhante. Olhando para o trabalho que fazemos, para os estúdios com que eu interajo semanalmente… Eu estou interagindo com grandes estúdios pelo menos uma vez por mês, falando com as pessoas que estão construindo o futuro dos nossos jogos, eles estão genuinamente preocupados com a acessibilidade.

E o Brasil?

Como em diversos outros setores, a acessibilidade tem seus próprios desafios em nosso país. No momento, um dos principais objetivos de Christian e sua equipe é a redução ou isenção de impostos para produtos de videogame para PcD. O Controle Adaptável de Xbox, vendido a R$ 999,90 no Brasil (preço original em dólar: $99.99), é um dos acessórios que receberiam um corte de preço considerável.

Com a missão de tornar a pauta da acessibilidade mais presente entre os brasileiros, a AbleGamers Brasil apoia criadores de conteúdo, PcD ou não, que se interessam em contribuir com a divulgação de conhecimento e com o estímulo de doações. Segundo Christian, houve um importante progresso em consciência social nos últimos anos, mas ainda há um longo caminho pela frente.

Ainda existe muito desconhecimento sobre o assunto, seja por desenvolvedores, empresas de jogos ou por jogadores com ou sem deficiência, então creio que o melhor caminho seja o da informação. O assunto é antigo, mas só agora está ganhando visibilidade, o que é ótimo.

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Assassin’s Creed: Valhalla, um dos jogos premiados pelo Video Game Accessibility Awards da AbleGamers em 2020 | Imagem: Ubisoft

Esse é um assunto de uma complexidade imprescindível. O que contei neste texto é apenas uma parte selecionada de um grande mar de histórias e de pessoas que lutaram para tornar a acessibilidade o que ela é hoje.

Para todos os jogadores brasileiros, há um time entusiasta com a vontade de permitir que todos possam experienciar esses jogos incríveis de hoje independentemente de qualquer condição. Eu não falo português, Christian tenta me ensinar um pouco, mas estou muito feliz que estamos crescendo e levando a felicidade de jogar ao máximo de pessoas possíveis. – Mark Barlet

Deixo aqui então um desafio aos leitores: hoje, há inúmeros streamers PcD. Procurem eles, conversem com respeito, entendam como é a vida deles. Tenho certeza que a experiência será enriquecedora para todos. – Christian Bernauer.

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Ghost of Tsushima, também premiado pelo Video Game Accessibility Awards da AbleGamers em 2020 | Imagem: Sony Interactive Entertainment

Acessibilidade não só permite que diversas pessoas possam aproveitar o entretenimento que elas tanto amam de forma justa – ela permite que todos nós tenhamos a melhor experiência possível, desde o jogador mais casual até o mais dedicado. Todos nós queremos jogar.

Reconhecer as dificuldades das pessoas com deficiência é reconhecer a própria humanidade. Os videogames são uma oportunidade maravilhosa para tornar nossas relações sociais mais justas e acolhedoras e eu espero, de coração, ter-lhe agregado algo com essa história.

Acesse a entrevista completa com Mark Barlet para reflexões sobre o passado, presente e futuro da acessibilidade nos videogames e com Christian Bernauer para saber quais são os planos, desafios e desejos da equipe da AbleGamers no Brasil.

Referências