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Admita: é quase impossível jogar um jogo por vez

Diversos fatores impedem as pessoas de se concentrar por várias horas em apenas um game

por André Custodio
Admita: é quase impossível jogar um jogo por vez

No universo dos games, o hábito de se dedicar a um único título perdeu espaço. A combinação de uma oferta gigantesca de jogos, o tempo limitado dos jogadores e a busca por estímulos variados transformou a experiência gamer em um exercício de multitarefa.

Dados do mercado, estudos científicos e relatos de jogadores revelam como essa dinâmica se consolidou, desafiando a ideia de exclusividade no consumo de jogos eletrônicos.

Um dilúvio de jogos no mercado

O mercado de games vive uma era de abundância. A Newzoo estima que a indústria global ultrapassou US$ 200 bilhões em receita em 2024, com mais de 2,5 milhões de títulos disponíveis em plataformas como Steam, PS Store, Xbox Store e lojas mobile.

No Brasil, a Pesquisa Game Brasil (PGB) 2023 mostrou que 73,4% da população joga algum tipo de game, o que equivale a 154 milhões de pessoas, segundo projeções baseadas nos dados do IBGE.

Serviços como o Xbox Game Pass e o PS Plus amplificam essa oferta. Com assinaturas que dão acesso a centenas de jogos por mês, o jogador médio na Steam, por exemplo, possui 15 títulos na biblioteca, mas conclui apenas 20% deles, conforme relatório da Valve.

Talvez essa seja a maior ironia do mercado atual: nunca tivemos tanto para jogar, mas tão pouco incentivo para ir até o fim.

PS Plus
Fonte: Sony

O segmento mobile também contribui para o volume. Pesquisas da Sensor Tower indicam que, em 2023, mais de 80 mil novos jogos foram lançados apenas na Google Play Store. Essa avalanche de títulos casuais, muitas vezes gratuitos, compete diretamente com produções AAA, fragmentando ainda mais a atenção dos jogadores.

Na prática, o mobile transformou os games em um passatempo de bolso, mas também em uma distração que raramente pede compromisso.

O relógio contra os gamers

O tempo disponível para jogar é um obstáculo claro. Nos Estados Unidos, a Entertainment Software Association (ESA) apontou em 2024 que o jogador médio dedica 12 horas semanais aos games.

No Brasil, a PGB 2023 registra uma média menor, de 8 horas, influenciada por rotinas de trabalho e estudo. Com uma semana de 168 horas, esse número representa menos de 5% do tempo total.

Outras atividades disputam esse recurso escasso. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) de 2022 revelou que 62% dos jovens brasileiros conciliam games com redes sociais e streaming, reduzindo o foco em experiências mais longas. A verdade é que o tempo virou um luxo que os gamers simplesmente não têm.

A indústria agrava a situação com lançamentos constantes. Em 2025, por exemplo, títulos como Monster Hunter Wilds, Split Fiction e Kingdom Come Deliverance 2 vêm disputando a atenção, com alguns deles levando dezenas de horas de gameplay.

Monster Hunter Wilds
Fonte: Capcom

Essa agenda intensa força os jogadores a priorizar algo, muitas vezes abandonando títulos em andamento para não ficarem fora do hype. Fica a sensação de que, se você não acompanha o ritmo, está automaticamente atrasado.

O ritual da multitarefa

A alternância entre jogos virou padrão. Dados da Nielsen SuperData de 2023 mostram que 68% dos gamers jogam pelo menos três títulos por semana.

Gêneros distintos atendem a necessidades diferentes: Fortnite para socializar, Stardew Valley para relaxar e Baldur’s Gate 3 para mergulhar em uma narrativa.

Jogos como serviço, como Destiny 2 e Genshin Impact, reforçam essa tendência com recompensas diárias e temporadas. Uma pesquisa da GDC (Game Developers Conference) de 2024 indica que 45% dos jogadores ativos nesses títulos acessam mais de um por dia para cumprir tarefas. Isso cria um ciclo de engajamento que dificulta a dedicação exclusiva.

Destiny 2
Fonte: Bungie

Parece que os jogos modernos não querem que você os termine, mas que viva neles indefinidamente.

A pressão de amigos e comunidades online também pesa. A PGB 2023 confirma que 54% dos brasileiros jogam para interagir socialmente, o que incentiva o uso de múltiplos títulos em paralelo.

O cérebro no limite

A ciência já investiga os impactos dessa rotina. Um estudo do Journal of Cyberpsychology, Behavior, and Social Networking (2023) constatou que alternar jogos eleva os níveis de dopamina, mas também aumenta o cortisol, hormônio do estresse, em 22% dos participantes que se sentiam sobrecarregados.

No Brasil, a USP identificou em 2022 que 28,1% dos adolescentes apresentam sinais de uso problemático de games. Embora nem todos cheguem ao Transtorno de Jogo pela Internet (TJI), a fragmentação entre títulos pode intensificar a sensação de ansiedade.

Talvez o maior risco esteja em confundir diversão com obrigação.

Mas nem tudo é negativo. Pesquisas da Universidade de Rochester (EUA) sugerem que jogadores multitarefa desenvolvem maior flexibilidade cognitiva. Testes de 2010 mostraram que esses indivíduos resolvem problemas 15% mais rápido que não-jogadores, um benefício ligado à capacidade de alternar contextos rapidamente.

A estratégia da indústria

As desenvolvedoras moldam esse cenário. Modelos live-service, como Call of Duty: Warzone, mantêm os jogadores presos com atualizações constantes. A Activision reportou em 2024 que 70% dos usuários retornam semanalmente por causa de eventos. E assim, os jogos se tornam menos obras e mais correntes.

Call of Duty: Warzone
Fonte: Activision

Plataformas como o Game Pass, com mais de 400 jogos disponíveis, incentivam a experimentação. Dados da Microsoft indicam que assinantes testam, em média, 10 títulos por mês, mas concluem menos de dois. Isso cria um ciclo de consumo superficial, favorecido pelo baixo custo de acesso.

As microtransações também entram na jogada. Um estudo da SuperData de 2023 revelou que jogadores de EA FC e NBA 2K gastam, em média, US$ 50 anuais em extras, mesmo alternando com outros jogos. Essa receita mantém a indústria investindo em títulos que disputam atenção constante. Não é exagero dizer que o lucro vem mais da distração do que da dedicação.

O novo normal dos gamers

Jogar um único título por vez virou exceção. A PGB 2023 aponta que 61% dos jogadores brasileiros seguem essa lógica, adaptando-se à oferta e ao tempo disponível.

Especialistas defendem que o segredo está na moderação. Um levantamento da ESA de 2024 mostra que 73% dos gamers se dizem satisfeitos com essa flexibilidade, indicando uma aceitação do modelo. Ainda assim, fica a dúvida: será que estamos jogando ou apenas correndo atrás do próximo estímulo?

Com a indústria crescendo e o metaverso despontando, a tendência deve se intensificar. Reconhecer essa impossibilidade talvez seja o primeiro passo para navegar com mais consciência nesse mar de pixels.

E como está sua jogatina por aí? Comente!