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Quando os jogadores têm razão (e a crítica erra)

Crítica deve resgatar cada vez mais sua essência de "pensar como um jogador"

por André Custodio
Quando os jogadores têm razão (e a crítica erra)

Por muito tempo, a crítica especializada no universo dos games se colocou em um pedestal. Com textos focados em análises mais técnicas, comparações e uma boa quantidade de games avaliados por mês, acreditávamos que nossas vozes tinham uma autoridade quase inquestionável.

Mas a verdade, que ganha força em um cenário onde as opiniões dos jogadores têm cada vez mais espaço, é que nem sempre acertamos. Em muitos casos, são os jogadores — aqueles que mergulham nos jogos, mas sem os filtros de embargos ou prazos editoriais — que enxergam o que realmente importa.

Está na hora de fazermos um mea culpa e reconhecermos: a crítica erra, e os jogadores, muitas vezes, têm razão.

Quando as notas divergem

Para ilustrar essa desconexão, basta olhar para o Metacritic, onde as diferenças entre o Metascore (média das análises profissionais) e o User Score (notas dos jogadores) revelam casos bastante curiosos.

Um exemplo clássico é Days Gone. Com um Metascore de 71, o jogo foi recebido com críticas mornas: problemas técnicos, uma narrativa clichê e mundo aberto que, segundo alguns, parecia “sem vida”. Mas os jogadores viram algo diferente.

Para quem viveu a jornada de Deacon St. John, o título era mais do que a soma de suas partes. O resultado? Um User Score de 85 e uma base de fãs tão apaixonada que, até hoje, clama por uma sequência que a Sony parece ignorar. Ao menos, o Remaster está a caminho.

Na direção oposta, temos Dragon Age: The Veilguard. A crítica foi até generosa (incluindo o MeuPlayStation), atribuindo ao jogo um Metascore de 82. Elogios não faltaram para o combate renovado, a acessibilidade e a vibrante direção de arte.

Dragon Age: The Veilguard
Fonte: BioWare

No entanto, para os fãs de longa data da franquia, Veilguard foi uma decepção. Muitos sentiram que o jogo sacrificou a profundidade narrativa e a identidade tática que definiam Dragon Age em favor de uma abordagem mais genérica e modernizada. O reflexo disso? Um User Score devastador de 39.

Surge, então, a pergunta: quem está mais próximo da verdade? A crítica, que analisa o jogo como um produto isolado, ou os jogadores, que o enxergam no contexto de algo mais atual, digamos assim?

Outro caso é No Man’s Sky. No lançamento, a crítica foi dura, apontando promessas não cumpridas e uma experiência repetitiva — algo que resultou em um Metascore de 71. Os jogadores, porém, foram ainda mais implacáveis, com um User Score inicial de 40.

Curiosamente, o game se redimiu com o tempo. Atualizações constantes transformaram No Man’s Sky em um título adorado, com um User Score que hoje supera o Metascore original. Aqui, a crítica e os jogadores erraram inicialmente, mas foram os fãs, com sua paciência e feedback contínuo, que ajudaram a moldar o jogo em algo justo.

Também vale mencionar Death Stranding. Com um Metascore de 82, o jogo de Hideo Kojima foi elogiado por sua ambição e inovação, mas também criticado por sua jogabilidade divisiva e estilo de jogo “ame ou odeie”. Já os jogadores deram um User Score de 74, com muitos considerando a experiência lenta e desconexa.

Death Stranding
Fonte: Kojima Productions

Para uma parcela significativa do público, no entanto, Death Stranding era uma obra-prima emocional, incompreendida por quem buscava ação frenética. Nesse caso, a crítica pareceu captar melhor a visão artística, mas os jogadores que abraçaram o ritmo único do jogo foram os que verdadeiramente o entenderam.

Por que a crítica erra?

A desconexão entre crítica e público não acontece por acaso. Existem fatores estruturais e culturais que explicam por que, tantas vezes, falhamos em captar o que os jogadores valorizam. Vamos a alguns deles:

A bolha do acesso antecipado

Críticos frequentemente jogam títulos sob condições artificiais: cópias antecipadas, embargos rígidos e prazos apertados. Essa experiência, isolada do contexto da comunidade, não reflete como o jogo será vivido pelo público.

Enquanto isso, os jogadores têm tempo para explorar, discutir em fóruns, jogar com amigos e, muitas vezes, experimentar versões corrigidas por patches. Essa diferença de perspectiva gera um abismo.

A obsessão pelo “novo”

A crítica tem uma tendência a supervalorizar a inovação, mesmo quando ela vem às custas da identidade de uma franquia ou da diversão pura e simples.

Jogos experimentais ou que desafiam convenções são frequentemente celebrados, mas nem sempre entregam o que os fãs esperam. The Veilguard é um exemplo: as mudanças foram vistas como um avanço técnico pela crítica, mas como uma traição pelos fãs.

O “desprezo” pela diversão

Parece contraditório, mas muitos críticos hesitam em elogiar jogos que são “apenas” divertidos, como se a simplicidade fosse um demérito. Enquanto isso, os jogadores não têm vergonha de celebrar um título que os faz sorrir, mesmo que ele não reinvente a roda. Days Gone não era perfeito, mas entregava adrenalina e emoção — e isso bastava para o público.

Falta de conexão com o legado

Quando analisamos uma sequência ou um jogo de uma franquia estabelecida, a crítica às vezes ignora o peso emocional que ela carrega para os fãs.

Para um crítico, Star Wars JEDI: Survivor pode ser apenas um bom jogo de ação. Para os jogadores, é uma continuação que precisava respeitar não apenas a narrativa do antecessor, mas todo o universo de Star Wars. Quando esse respeito falta, a crítica aplaude, mas os fãs se frustram.

Star Wars JEDI: Survivor
Fonte: Respawn

E quando todos concordam?

Nem tudo é conflito. Há momentos em que crítica e público caminham de mãos dadas. God of War, com Metascore de 94 e User Score de 91, reinventou uma franquia sem perder sua essência, conquistando praticamente a todos.

Astro Bot, com notas altíssimas de ambos os lados, trouxe alegria pura em uma experiência técnica impecável. It Takes Two e Baldur’s Gate 3 também ganharam elogios por sua capacidade de entregar aventuras memoráveis, seja pela cooperação ou pela profundidade.

A crítica precisa ouvir

Se há uma lição a tirar dessas discrepâncias, é que a crítica precisa descer do pedestal. Tratar o jogador como alguém que “não entendeu” o jogo é um erro arrogante. Talvez, ele tenha entendido melhor do que nós.

Talvez sua conexão com aquele universo, com aquele personagem ou com aquele loop de jogabilidade seja mais autêntica do que qualquer review que busca dissecar um título como se fosse uma equação matemática.

Um caso recente foi a própria série de The Last of Us, que vem sendo aclamada pela crítica com a estreia da segunda temporada, mas obteve reações mistas da comunidade, especialmente pelas mudanças narrativas e de conceito.

The Last of Us
Fonte: HBO

Mas lembre-se: estamos sempre acompanhando comentários e buscando interagir ao máximo. E se não fazemos isso com regularidade, temos a responsabilidade de agir dessa maneira e buscar aprender mais — ou reaprender — o que é ser um jogador.

A crítica não deve se isolar em torres de marfim, escrevendo para si mesma ou para uma bolha de colegas. Deve dialogar com a comunidade, entender suas paixões e, acima de tudo, reconhecer que a experiência de um jogador comum pode ser tão válida — ou mais — do que a de um analista.

Jogos são arte, mas também são entretenimento. E ninguém entende melhor o valor do entretenimento do que aqueles que pagam por ele, vivem ele e o defendem com paixão. Chegou a hora de ouvir mais. Porque, muitas vezes, os jogadores têm razão — e nós, da crítica, precisamos aprender com eles.