Os jogos como serviço e free-to-play vão dominar o mundo. E agora?
Como lidar com a tendência crescente dos jogos que não acabam nunca
Fortnite alcançou o total de 400 milhões de usuários registrados em 2021 e provavelmente tem ainda mais hoje em dia. Segundo dados de sua produtora, a Epic Games, o jogo rendeu US$ 5,1 bilhões em 2020, enquanto uma projeção do site Business of Apps estima uma renda de US$ 5,8 bilhões para 2021 – número que pode superar seu recorde de 2018, quando o game gerou uma renda de US$ 5,4 bilhões.
Olhar para esses números ajuda a entender o tema central do artigo da vez: por que os jogos como serviço e free-to-play se tornaram a tendência que hoje são? E o que podemos esperar do futuro desse estilo de game e seu impacto na indústria como um todo? Vamos debater o assunto e, quem sabe, chegar a algumas conclusões.
Definindo “tendência”
Não podemos simplesmente chamar um estilo de game de “tendência” e seguir em frente falando do tema sem antes oferecer evidências que corroborem a afirmação. O que faz este autor enxergar uma tendência nesses gêneros?
O formato free-to-play (F2P) é quase tão antigo quanto os games. Fortnite hoje em dia é, possivelmente, o game mais emblemático quando falamos de F2P, mas quem joga no PC desde as antigas deve se lembrar muito bem de títulos como Gunbound e Ragnarok Online, só pra citar alguns sucessos no Brasil.
Mas foi com o advento dos smartphones que esse estilo de jogo realmente se popularizou nas mãos de todo mundo. Com a perspectiva de ter apenas um “joguinho” para jogar no celular e passar o tempo – muitas vezes no banheiro – fica difícil para as produtoras cobrarem pelos seus games para jogadores casuais e pessoas que nem se consideram fãs de jogos. A solução encontrada foi oferecer a maioria dos games num modelo “freemium”. É grátis para baixar, atraindo um grande volume de jogadores, mas as compras no app garantem alguma renda para seus criadores, vindo dos jogadores que ficam mais engajados.
Essa popularização por meio dos dispositivos que estavam no bolso de todo mundo ajudou a aquecer o mercado e procura desse tipo de jogo em outras plataformas, até que começaram a “pipocar” outros exemplos de grande sucesso, tanto no formato F2P como no formato de “jogos como serviço” – que, em grande parte, seguem a mesma lógica.
No processo de popularização desses estilos de monetização, foram descobertos dois gêneros de jogos que se mostraram extremamente populares e que funcionam bem com o formato: o battle royale, tornado famoso por PUBG e agora dominado por Fortnite; e o MOBA, iniciado por Dota e hoje dominado por League of Legends.
Hoje em dia são diversos os exemplos de jogos F2P ou como serviço que seguem rendendo para suas produtoras. Podemos citar Genshin Impact, Apex Legends, Destiny 2 e Final Fantasy XIV só para ressaltar alguns.
Mas não são apenas os lançamentos de novos games F2P e como serviço que mostram como os formatos viraram tendência. Outro ponto marcante é notar franquias consagradas que decidiram adotar o estilo para atrair mais jogadores e conseguirem uma outra via de retorno financeiro.
Call of Duty Warzone talvez seja o exemplo mais chamativo, por ser uma franquia imensamente bem sucedida que decidiu lançar um spin-off F2P no estilo de battle royale. Mas temos vários outros exemplos na área, inclusive alguns bem inesperados, como Final Fantasy VII: The First Soldier.
E talvez os exemplos que melhor comprovam o F2P e serviço como tendências são Diablo e Overwatch. A Blizzard enfrentou duras críticas e até vaias quando anunciou Diablo Immortal para os celulares, mas seguiu em frente com o plano e hoje tem ganhado bastante com o game – que continua sendo extremamente criticado em seu modelo de monetização. Overwatch chama ainda mais a atenção, porque era um jogo pago cujos devs escolheram transformar em F2P para sua continuação, Overwatch 2.
Por que virou tendência?
Os números e dados do mercado respondem com facilidade a essa pergunta. O próprio processo do Overwatch é interessante: a Blizzard decidiu que mais compensa ter uma base instalada enorme com o jogo gratuito para ir cobrando pelas compras dentro dele, do que cobrar para começarem a jogar e acabar tendo menos jogadores.
Mas os números sozinhos não bastam para justificar. Para cada exemplo de imenso sucesso, temos um bom punhado de flops no segmento dos F2P e jogos como serviço. A Square Enix que o diga, amargando tristezas como Outriders e Babylon’s Fall, enquanto o jogo dos Vingadores certamente não alcançou também o sucesso que a produtora gostaria.
Apesar da falta de sucesso, a produtora não pretende desistir do segmento, e é apenas uma entre tantas outras. A PlatinumGames, que fez Babylon’s Fall, não se abalou pelo fiasco e manteve firme sua diretriz de investir mais em jogos como serviço para o futuro. O PlayStation, enquanto isso, tem feito aquisições e investimentos para garantir mais jogos como serviço e para dispositivos móveis com sua marca.
Por isso, acredito ser interessante ir além dos números concretos que temos neste trecho para fazer um breve exercício de especulação, que considero conveniente.
É bem provável que essa preocupação revigorada das produtoras em entrar na área dos jogos de longa duração, que geram gastos in-game e outras microtransações, vem do crescente sucesso do formato de assinatura de bibliotecas para jogar.
A era das assinaturas
O modelo de pagar uma mensalidade para ter acesso a uma biblioteca de jogos tem se popularizado rapidamente. Bem sabemos que o investimento da Microsoft no Xbox Game Pass tem sido milionário, e a Sony decidiu aderir ao movimento reformulando todo seu sistema da PS Plus e do PlayStation Now para criar os novos formatos da PS Plus.
O investimento na criação de games tem sido cada vez maior, o que tem resultado nos jogos ficando mais e mais caros. Já tínhamos uma média bem salgada de preço na era dos R$ 200, e hoje os lançamentos para PS5 chegam por R$ 350.
Além da questão do preço, a imensa popularidade do segmento tem soterrado jogadores de opções, que inflam as prateleiras das lojas virtuais dia após dia. Independentemente do investimento feito, às vezes é difícil escolher sua próxima opção para jogar quando não é um game cujo lançamento você já estava aguardando antes.
A possibilidade de pagar uma mensalidade para ter acesso a uma biblioteca completa de games, então, passa a ser muito interessante. Com o preço de um lançamento no PS5 dá pra pagar um ano de PS Plus Extra e ainda pegar R$ 10 de troco. Ou, o jogador pode investir mais R$ 40 sobre o valor e pegar logo um ano de PS Plus Deluxe.
Com a assinatura, a pessoa passa a ter acesso a toda uma biblioteca de games, entre novos e antigos, grandes lançamentos ou indies. O investimento financeiro já foi, o jogador pode agora testar cada game que lhe interessar e escolher em qual vai investir o seu tempo também.
Mas não é apenas o interesse crescente dos jogadores no modelo de assinaturas que faz as produtoras ficarem atentas a este mercado. Temos também a questão da jogatina por streaming que, goste ou não, é um futuro que parece inevitável. O pagamento pelo acesso a uma biblioteca de jogos e os games por streaming – como já vinha acontecendo na PlayStation Now – são duas coisas que andam perfeitamente de mãos dadas quando imaginamos o futuro do mercado.
As produtoras esperam que seus sistemas de assinaturas de bibliotecas e jogos por streaming alcancem ainda mais jogadores. O “problema”, do ponto de vista de quem quer lucrar com o formato, é o número de pessoas que cancelariam suas assinaturas antes de somar o valor de um jogo triplo A, por exemplo. Dá pra zerar God of War Ragnarök em um mês, muito antes de completar o tempo necessário para a mensalidade render o mesmo valor de comprar o game em sua estreia.
A solução das grandes empresas, então, é não tentar bater de frente contra a onda, mas sim, surfar com ela. Investindo em cada vez mais jogos como serviço ou F2P, no modelo de longevidade e gastos a longo prazo, as produtoras pretendem rechear suas bibliotecas com opções que podem prender os jogadores por muitos anos.
Assim, a produtora tem a garantia da assinatura por mais tempo – o que inclui jogos F2P, que oferecem itens bônus para usuários de determinadas assinaturas – e também aumenta seus lucros com os gastos feitos dentro do jogo, através das microtransações, compras de loot box, passes de temporada e assim por diante.
Esse é um argumento que justifica também a quantidade de jogos desse tipo que cada produtora está fazendo ou tem planejado para fazer. Não importa quantos flops vemos, os games não param de ser anunciados. A ideia é ter diversas opções mesmo, que os jogadores terão acesso em modelos de assinatura, porque nunca se sabe qual vai ser o jogo certo para viciar um potencial assinante.
Os prós e os contras dos jogos como serviço
Como tudo na vida, os jogos F2P e como serviço têm suas vantagens e desvantagens. Vale destacar algumas nos dois casos.
A primeira vantagem de um game free to play é óbvia e está no nome do gênero – o jogo é grátis. Sem pagar nada, você faz o download e pode estar se divertindo em instantes em alguns dos jogos mais jogados no mundo, como Fortnite ou Genshin Impact. É interessante ressaltar também o enorme número de opções e variedades para agradar a todos os gostos.
Não apenas isso, mas são games que, pelas suas naturezas, continuam a receber conteúdo mês após mês, mantendo-se novos e interessantes por anos. Essa é a mesma vantagem que vemos nos games como serviço, que têm como principal diferença a necessidade de serem comprados num primeiro momento, mas que depois funcionam bastante como os F2P.
A chegada constante de novos conteúdos certamente é um grande atrativo em jogos nesses formatos. São comuns os jogadores que enjoam momentaneamente para depois voltar quando um evento em especial os atrai. Fortnite é muito digno de nota aqui porque o game conta com algumas temporadas e eventos que alteram fundamentalmente seu gameplay, atraindo novos jogadores que não tinham interesse antes e reacendendo a vontade de jogar em veteranos que tinham enjoado.
É simples falar das vantagens nesses tipos de jogos, é na hora de comentar os contras que fica um pouco mais complicado, primeiro porque muitas das desvantagens têm a ver com o gosto pessoal de cada um.
Quem não curte os jogos como serviço e F2P geralmente apontam problemas no sistema de monetização, que muitas vezes pode deixar bem frustrante o processo de destravar novos itens. Diablo Immortal tem sido um dos exemplos mais negativos quando mencionamos a dificuldade de liberar itens – até mesmo para quem paga por eles!
Os games nesse estilo também não costumam ser boa pedida para quem valoriza os enredos acima de tudo. O formato de “jogo sem fim” cria limitações para os tipos de histórias que podem ser contadas, e a forma que as narrativas aparecem. Isso não incomoda a maioria dos fãs do formato, mas afasta os jogadores que colocam a campanha acima de tudo.
Esses são pontos contrários simples, pequenos até. Para realmente falar do maior “contra” em relação aos jogos como serviço e F2P precisamos entrar num assunto bem mais espinhoso: o vício.
O verdadeiro problema
A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu oficialmente o vício em videogames como uma doença moderna em 2019. O transtorno entrou para a Classificação Internacional de Doenças em sua 11ª revisão (ICD-11) e sua identificação foi caracterizada da seguinte maneira, em tradução livre:
Para o transtorno em games ser diagnosticado, o padrão do comportamento deve ser severo o bastante para resultar em um obstáculo significativo no funcionamento de uma pessoa na área pessoal, familiar, social, educacional, ocupacional ou outras áreas importantes, e normalmente deveria ser evidente por pelo menos 12 meses.
O vício é um comportamento disfuncional e uma doença que deve ser levada a sério onde quer que se manifeste. A área de games, historicamente relacionada a lazer, entretenimento e brinquedos, muitas vezes não recebe a devida atenção quando falamos de comportamentos nocivos à saúde, especialmente no vício. “É só parar de jogar”, pode dizer os mais irresponsáveis, mas profissionais sérios da saúde reconhecem a severidade do problema e a necessidade de seu tratamento.
O vício em jogos pode acontecer em qualquer estilo e gênero, mas quando temos produtos feitos especialmente com a intenção de manter o jogador voltando pelo maior tempo possível, o risco fica muito elevado.
Existe toda uma ciência por trás do condicionamento de comportamentos, e as empresas destilam as melhores táticas em seus F2P e jogos como serviço para garantir seu aproveitamento máximo. O resultado não fica apenas nas muitas mecânicas de socialização e prêmios diários. Até o processo de abrir uma caixa de loot e os sonzinhos que ela faz são escolhidos a dedo para instigar a repetição do comportamento no jogador.
Não é à toa que jogos de azar são proibidos para menores de 18 em diversos países, enquanto em muitos outros eles não são permitidos de forma alguma. É difícil o lugar que não envolve uma alta regulação em sistemas de apostas – e isso inclui até a famosíssima Las Vegas.
Por isso grandes produtoras como EA e Activision brigam com unhas e dentes contra a classificação de suas mecânicas de loot como jogos de azar, a fim de evitar regulações mais intensas em seus jogos com esses recursos. Parece que todo mês temos alguma grande distribuidora sendo chamada a depor em órgãos regulatórios, e os argumentos que saem dessas consultas às vezes chamam a atenção pelo inusitado.
O grande sucesso dos games não é algo recente, mas é um mercado em constante transformação e as mudanças acontecem de forma muito rápida. Enquanto os F2P e jogos como serviço estão numa tendência de ascensão, é importante que as produtoras tomem algum cuidado para que o relacionamento de todos os jogadores seja saudável com esses títulos, se não, serão os órgãos regulatórios e autoridades competentes que tomarão essas medidas por elas.
Conclusão
Os jogos como serviço e free-to-play são uma importante fonte de renda para suas produtoras, e a popularidade dos títulos bem sucedidos é incontestável. Com jogadores felizes e as empresas ganhando dinheiro, fica difícil criticar o formato.
Mas para quem não é fã desse estilo de jogo pode ficar frustrante ver sua tendência de crescimento pegando o espaço de outras formas de se fazer jogo. Talvez um dos maiores baques recentes foi a PlatinumGames, que sempre teve excelência em jogos de ação single-player, mas que agora quer focar muito mais em jogos como serviço – mesmo depois da queda de Babylon’s.
Também não podemos ignorar as práticas predatórias que vemos na maioria dos jogos neste formato em relação aos jogadores que possam se viciar. O prejuízo na vida dessas pessoas pode ser muito maior do que o financeiro.
Como sempre, o equilíbrio é nossa melhor aposta. Os altos rendimentos desses jogos podem ajudar no investimento em games de outros estilos também, e garantir bibliotecas bem variadas para agradar todo tipo de jogador, mesmo quando falamos de modelos de assinatura. As mecânicas importantes para incentivar o retorno dos jogadores por um longo período não podem ser abusivas e especialmente pensadas para viciar. Buscar um equilíbrio pode ser benéfico aos jogadores e às produtoras.
Como bem sabemos, no entanto, às vezes pedir por equilíbrio já é pedir muito.