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Dandara: Trials of Fear: conversamos com estúdio brasileiro, criador do jogo

Estúdio de Minas Gerais trouxe uma ótima experiência para o PS4

por Raphael Batista
Dandara: Trials of Fear: conversamos com estúdio brasileiro, criador do jogo

A Long Hat House é um estúdio que tem no comando os brasileiros João Brant e Lucas Mattos e que acaba de lançar Dandara: Trials of Fear (confira análise clicando aqui). E nós tivemos a oportunidade de conversar um pouquinho com a equipe para sabermos mais detalhes do game.

MeuPlayStation: Como surgiu a ideia e o conceito do jogo e por que vocês decidiram contar esta história?

Long Hat House: O jogo surgiu primeiro da jogabilidade e não da história em si. O cerne foi uma ideia que proporcionou luta e exploração legal na tela de toque e fomos evoluindo essa ideia pra um Metroidvania mobile. Gostamos muito de mexer com a touchscreen no nosso primeiro jogo, Magenta Arcade, e queríamos avançar mais nas nossas ideias do que é possível fazer com a plataforma. Claro que o Dandara foi crescendo muito até chegar ao momento que está hoje, no PlayStation.

Com o gameplay avançando, procuramos qual história deveria ser contada com ele. Conversamos muito sobre o que torna filmes e livros do Brasil realmente brasileiros, as características que vemos que fazem deles tão familiares para nós, e questionamos a falta disso em jogos, principalmente nas nossas próprias idéias. Decidimos que, como o jogo tem uma jogabilidade muito diferente, um tema brasileiro viria junto, pois para o maior público (o estrangeiro) também seria uma história muito diferente.

Como o gameplay era baseado em batalha e conflitos, pensamos em adaptar um conflito brasileiro no caso o de Palmares, tanto que passamos a chamar internamente o projeto de Projeto Dandara – em homenagem à Dandara dos Palmares. Mudamos de idéia sobre adaptar a história pouco tempo depois: tratar esse conflito com uma jogabilidade tão onírica não seria fácil, e para nós, apenas duas pessoas na época, ambos programadores, a pesquisa necessária para trabalhar a narrativa, de forma justa e correta, estava fora do nosso alcance. E ainda era o nosso segundo jogo, com pouca experiência queríamos focar em desenvolver um jogo divertido.

Modificamos a narrativa para algo mais pessoal e abstrato, mas como podem ver, a inspiração original permaneceu, o nome Dandara trouxe muito significado para o jogo, e para a personagem principal.

MeuPlayStation: Quais foram as principais inspirações para vocês? Dá pra perceber que o jogo conversa um pouco com mecânicas de Celeste, a ideia de Castlevania, até um pouco da dificuldade de elementos de Dark Souls como o renascimento de inimigos após usar o acampamento.

Long Hat House: Muita coisa de narrativa, como dito antes, foi deliberadamente inspirado no que vemos na rua, no que aprendemos nas escolas, no que consumimos de mídia e nas pessoas com quem conversamos.

Quando o design começou a admitir exploração, claro que acabamos nos aproximando dos Castlevanias e Metroids (jogos que eu particularmente adoro). O lance do Dark Souls (jogo que também amamos) veio muito naturalmente, na verdade. Muitas das mecânicas “souls-like” vieram antes de notarmos que também estávamos nos aproximando desse estilo, mas claro que, quando percebemos as similaridades, os Souls se tornaram uma referência importante nas formas de usar tais mecânicas.

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Fonte: PlayStation 4.

No protótipo, por exemplo, como o movimento da Dandara é muito rápido, as pessoas costumavam não dar muita bola pros inimigos, sair correndo e morrendo muito por descuido, por causa da velocidade. Colocar recompensa de “recurso” no inimigo foi natural, mas acabou que também muita gente simplesmente morria pra chegar no acampamento. O Dandara foi um jogo muito pensado na experiência do backtracking, os inimigos permanecerem mortos no caminho de volta ajudava nesse retorno, além de permitir ao jogador o gostinho de voltar com mais velocidade. Mas, para manter o desafio da exploração, os inimigos precisavam renascer em algum momento, e no uso da cabana era onde isso fazia mais sentido.

Mas o jogo tem várias outras referências. Fiquei muito mais confiante em adicionar referências culturais depois de ter jogado Okami por exemplo, um jogo muito folclórico japonês. O ritmo de exploração das salas também vem muito de Resident Evil e Killer7 também!

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Fonte: PlayStation 4.

MP: Como vocês criaram o conceito da jogabilidade? É algo muito diferente do que estamos acostumados com jogos de plataforma em 2D. O game tem uma pegada estratégica para se posicionar corretamente, mas não abre mão da intensidade da ação. Foi difícil conciliar isso?

LHH: Acho que muito dessa dificuldade veio, em parte por gostarmos de jogos difíceis, mas também porque sentíamos falta de jogos difíceis para touchscreen, jogos que realmente precisassem da atenção e imersão do jogador. O nosso primeiro jogo, Magenta Arcade, era mobile e bem difícil, e a comunidade recebeu de braços abertos esse aspecto! Queríamos fazer um jogo que não te puxa pelas mãos, que recompensa você por pensar nas suas ações e se planejar.

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Fonte: PlayStation 4.

Mas sim, para encontrarmos uma dificuldade que consideramos justa, foi necessário muita discussão, auto-reflexão e refazer inimigos e projéteis novamente. O jogo foi projetado para você calcular um lugar que pode ser seguro o suficiente para carregar um tiro, e sair dali rapidamente. Ou então usar uma arma secundária para ganhar com mais facilidade, gastando recursos. São várias mini-perguntas que queríamos colocar na cabeça do jogador, em cada encontro com algum inimigo.

MP: Eu fiz uma pesquisa e o nome Dandara significa “princesa negra” ou “princesa guerreira”. Além disso, na história do Brasil temos a Dandara dos Palmares, a esposa do Zumbi dos Palmares. O jogo conta com vários elementos brasileiros, como a própria Tarsila do Amaral, e a ideia do “Sal” que lembra o período colonial. Essa “coincidência” foi pensada? Caso tenha sido, por que decidiram criar o mundo dessa forma?

LHH: Sim! Como dito anteriormente, a personagem principal, inspirada na Dandara dos Palmares, sobreviveu a transição do enredo do jogo para algo mais onírico. Ela ainda traz toda sua carga simbólica muito forte de luta pela libertação. Aliás, todas essas menções carregam suas cargas: Tarsila é uma forte referência de artista visual, tão familiar pra nós brasileiros, que sempre estudamos ela nas escolas, e também com uma posição importante na história da arte no Brasil. O jogo ganha mais significado à medida que se conhece esses personagens também na vida real, essa relação acontece com todas as “referências” que existem no jogo.

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Fonte: PlayStation 4.

A nossa busca por incluir essas inspirações no jogo tomou conta da narrativa, com o tempo as referências começaram a ser mais diretas, justamente por contribuir para a estória, sem que precisemos adicionar linhas e linhas de diálogo e roteiro sobre os personagens, por exemplo. O universo que estávamos criando, uma coisa mais “Alice no País das Maravilhas” contribuiu também, essa mescla de referências se fez possível, com personagens disformes, artísticos e variados.

MP: A gente vê uma evolução natural dos desenvolvedores brasileiros. Temos projetistas trabalhando em God of War, a gente viu o próprio Celeste concorrendo ao GOTY. Vocês, de dentro da indústria, como enxergam esse processo? Esperam por algo ainda maior para os próximos anos?

LHH: Claro que sim! Acho que somos muito capazes! Acho importante também o público observar isso. Ver que gráficos retrô, como pixel art, além de ter seu valor inerente (muito dificilmente deixaremos de ter jogos assim), esse tipo de coisa também é, para muitos, uma parte do caminho necessário para se estabelecer fazendo jogos.

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Eu vejo estúdios e grupos fazendo seus segundos, terceiros jogos e a qualidade subindo quase que exponencialmente, com muito pé no chão! Indica que vem aí jogos cada vez mais incríveis.

MP: Vocês pensam em dar uma sequência para a história de Dandara ou acreditam ser melhor trabalhar em um projeto inédito?

LHH: Gostaríamos mesmo, agora, de trabalhar com uma mecânica diferente do Dandara, uma coisa nova. É o que a gente mais gosta de fazer, e depois de quase cinco anos no Dandara, a gente tá bem animado pra voltar a criar algo do zero. Nunca se sabe, talvez faça sentido continuar o enredo do jogo com uma mecânica diferente, mas sem nenhuma promessa por enquanto.

MP: Cá entre nós: é possível completar o jogo em menos de 1h17min para bater o speedrun dos desenvolvedores? Nós concluímos o jogo com 12 horas (com 99%) de exploração e não conseguimos nos organizar para descobrir os caminhos mais diretos. Não é lá bem uma pergunta, mas apenas um comentário sobre ser uma platina de respeito e desafiadora.

LHH: Hahahaha, pra falar a verdade, o real tempo de desenvolvedor é um pouquinho menor, porque é o do Lucas, então usamos o meu pra dar uma leve “desentimidada”.

A dica que eu tenho é que não é necessário fazer uso de nenhum glitch pra fazer esse tempo. E que também não é necessário vencer o Carcereiro, simplesmente ir direto no Eldar dá um final (o final antigo sem o Trials of Fear) que já conta pra esse troféu.

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Fonte: PlayStation 4.

Num jogo de exploração assim, conhecer os desafios e os caminhos é o que toma mais tempo, depois da primeira vez, dá pra reduzir isso bastante indo direto ao ponto.

MP: Qual a mensagem que Dandara carrega? Se vocês pudessem definir a experiência em uma só frase, como seria?

LHH: Difícil responder essa pergunta, porque acreditamos que o jogo é aberto para interpretação e explicar o que seria a “nossa interpretação” estraga muito da experiência do jogo para nós jogadores.

Resumir a experiência do Dandara em uma frase seria: “Explore um mundo abstrato e insistentemente hostil, onde teto e chão têm mesmo significado.”

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A talentosa equipe da Long Hat House.