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A morte da mídia física

O que acontece com os discos e cartuchos num mercado cada vez mais digital?

por João Gabriel Nogueira
A morte da mídia física

Poucas tendências são tão visíveis no mundo dos games como o vagaroso fim da mídia física. As produtoras estão fazendo o que podem para manter sob controle os ânimos facilmente inflamáveis dos jogadores, mas a cada geração ficamos mais próximos de um mundo de distribuição de games completamente digital.

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Uma hora isso vai acontecer. Não é uma questão de “se”, é uma questão de “quando”. O que podemos esperar de um futuro sem a mídia física? Quais as vantagens e desvantagens do formato? E o que significa, na prática, falar do “fim” de um produto comercial no mundo em que vivemos? Mais uma vez, vamos a um artigo tentando responder perguntas.

A história da mídia física

Todo mundo que se interessa por games sabe do que estamos falando quando usamos o termo “mídia física”, mas cabe aqui fazer uma breve definição – até pra trazer algumas histórias e curiosidades sobre o formato.

Chamamos de mídia física ao formato de distribuição popular de jogos mais antigo que conhecemos. Os games eram vendidos e distribuídos num objeto físico, encaixado num console, computador ou máquina para rodar o jogo. Os cartuchos foram os primeiros a se popularizar entre os jogadores de console, enquanto os jogadores de PC usavam o disquete e seus antecessores até há mais tempo. 

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A título de curiosidade, o primeiro console do mundo a suportar o formato de cartuchos não é um dos nomes mais conhecidos. Trata-se do Channel F, da Fairchild, desenvolvido por um time de engenheiros liderado por Jerry Lawson em 1976 e que tinha como os cartuchos intercambiáveis seu principal ponto de venda.

O Channel F, no entanto, nunca chegou a fazer um grande sucesso, e foi a Atari que realmente popularizou o formato do videogame doméstico como ele viria a ser conhecido por anos. A empresa adotou o mesmo formato dos cartuchos, mas teve a grande sacada de investir em criar versões domésticas dos jogos que faziam sucesso nos fliperamas – como o fenômeno Space Invaders, da Taito.

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Avance alguns anos no tempo e temos as primeiras tentativas de oferecer jogos no formato de disco. E não, não estamos falando do PlayStation. Ainda.

Logo em 1985 o NEC PC Engine tinha um acessório estendido para a leitura de CDs, que mais tarde se tornou o famoso TurboGrafx, nos EUA. Também podemos colocar na lista de primeiras tentativas o estranhíssimo Philips CD-i, lançado em 1991.

Os leitores provavelmente se lembrarão mais, no entanto, da tentativa da Sega de entrar no meio, quando a empresa foi criando seus diversos add-ons para o Mega Drive que transformavam o videogame num Megazord desastrado. Um dos mais famosos foi o Sega CD.

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Perto da mesma época, a Sony decidiu se arriscar no aquecido mercado de consoles de videogame domésticos, depois de uma parceria malfadada com a Nintendo. Em 3 de dezembro de 1994 chegava às prateleiras das lojas do Japão o console que, com o perdão do trocadilho, mudaria o jogo da mídia física para sempre: o primeiro PlayStation.

O PSOne pode não ter sido o primeiro console a tentar adotar os discos para distribuir seus jogos, mas certamente foi o primeiro a conseguir fazer dar certo. O videogame definiu o que seria um novo padrão para o formato de mídias físicas, que continuaram sendo discos enquanto passavam do CD para o DVD e, atualmente, BluRay.

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Só não podemos chamar os discos de único formato de mídia física disponível na atualidade por causa da Nintendo. A casa do Mario nunca abandonou os cartuchos para seus portáteis e, depois de tentar os discos no Wii e Wii U, voltou aos cartuchos para o Switch –  que é console de mesa e portátil ao mesmo tempo.

Os números não mentem… Será?

O Ars Technica, um dos sites de tecnologia mais conhecidos e respeitados no mundo, encomendou uma pesquisa neste ano para a igualmente reconhecida empresa de estatísticas NPD Group, justamente para comparar dados entre a distribuição de mídias físicas e digitais dos jogos. Uma passada de olhos rápida nos resultados mostra o sucesso esmagador do meio digital sobre o físico.

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As proporções parecem covardia. Chegamos a ficar tristes pelos nossos amigos fãs da mídia física, que podem observar ano após ano a barrinha laranja descendo e a verde ficando cada vez mais dominante.

A tendência pode ser observada até em cada um dos consoles de maneira independente. A plataforma da Nintendo é a única que mostra alguma estabilidade entre os lançamentos físicos, e seus jogadores são famosos mesmo por comprar mais cartuchos.

Esses gráficos podem servir, então, como argumento incontestável da morte declarada da mídia física, correto? De certa forma sim, mas talvez não pelos motivos que você está pensando.

Como mencionei no primeiro parágrafo deste trecho do artigo, o sucesso esmagador da mídia digital é mostrado por “uma passada rápida de olhos”. Uma leitura mais atenta às métricas usadas para os gráficos mostra uma realidade um pouco diferente.

Os dados estatísticos usados pelo NPD não se referem às vendas dos jogos ou à procura dos jogadores por eles, mas sim ao número de games distribuídos em cada formato. Ou seja, partem exclusivamente das decisões das produtoras de quantos games serão feitos para distribuição em mídia física e quantas chaves estão sendo geradas para distribuição digital.

Então fomos enganados? Os jogadores continuam preferindo mídias físicas e são as produtoras que estão parando sua distribuição? Provavelmente também não é o caso.

Se a procura por mídias físicas fosse muito maior que a digital, as produtoras não estariam perdendo essa oportunidade de fazer dinheiro. O planejamento de para onde se destinam seus recursos e investimento parte muito da expectativa de retorno, e as mídias digitais não estariam crescendo muito mais se não estivessem mostrando mais resultado.

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Mas não podemos ignorar também que essa é uma tendência conveniente para as distribuidoras de games. A distribuição de mídias digitais sai bem mais em conta do que o antigo modelo de discos e cartuchos, então é do interesse das produtoras incentivar o formato atual.

E é por isso que esses gráficos servem, sim, como argumento para um possível funeral da mídia física. Porque eles mostram a tendência das empresas que realmente fazem os jogos em abandonar o formato, aproveitando uma preferência crescente entre os jogadores.

As vantagens e desvantagens de cada formato

É válido ressaltar aqui quais são os prós e contras em cada formato de mídia, já que foi mencionado que as digitais têm se mostrado uma preferência entre os jogadores, não apenas pelo incentivo de suas fabricantes.

A distribuição digital tem como vantagem principal seu imediatismo. Atualmente não é necessário esperar nem pelo lançamento para baixar a maioria dos grandes jogos. Dá pra deixar pré-carregado no seu PC ou videogame e sair jogando no segundo em que a estreia do game é liberada. Numa sociedade cada vez mais ansiosa e imediatista, que vive a plena cultura do hype, não dá pra medir o valor de uma vantagem dessas.

A questão do espaço físico também pode ser muito interessante para grandes bibliotecas. Existe um valor emocional e estético em olhar uma estante cheia de jogos, mas muitas vezes começa a ficar complicado de guardá-los e conservá-los. Numa biblioteca digital seus games nunca se desgastam e estão sempre ao seu alcance.

Falando no tamanho das bibliotecas, também é muito mais fácil encontrar os jogos que você quer nas lojas digitais. Além do conforto de não ter que sair de casa, títulos mais antigos que teriam sua fabricação descontinuada permanecem disponíveis nas lojas online, já que não ocupam nada além de banda no servidor.

Também precisamos mencionar as vantagens que vêm dos incentivos das produtoras que têm interesse no maior sucesso das mídias digitais. Além de benefícios e itens no jogo que podem ser distribuídos, as promoções em jogos digitais costumam ser muito mais expressivas do que nas mídias físicas. Quando pesa no bolso, fica difícil de competir.

Falando na questão da economia, temos uma boa oportunidade para começar a listar as vantagens da mídia física. Isso porque um ponto positivo que os jogadores mais gostam é o mercado de empréstimo e de revendas.

Os discos e cartuchos possibilitam emprestar, vender e comprar jogos usados com muita facilidade. E essa realmente é uma vantagem considerável. Diferente de muitos produtos, um jogo moderadamente bem cuidado não mostra quase nenhuma diferença em relação a um novo, oferecendo muito benefício no mercado de segunda mão. E esse acaba sendo até mais um motivo para as produtoras preferirem as mídias digitais, uma vez que elas não recebem nada pela revenda de seus jogos.

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Um outro ponto positivo das mídias físicas que não pode ser ignorado é sua importância para a preservação e história dos jogos. Atualmente temos centenas de jogos disponíveis apenas no meio digital que, se as produtoras decidirem remover, vão simplesmente desaparecer do mundo e ficarem inacessíveis por métodos legais. Enquanto isso, temos cartuchos de jogos do Atari bem preservados que funcionam até hoje e que podem ser colocados em museus – também numa versão digital – para a preservação de suas histórias. Esse é um ótimo exemplo em que os formatos físico e digital de uma mídia produzem juntos uma grande vantagem para a história do videogame.

Até pouco tempo atrás poderíamos listar mais uma vantagem para as mídias físicas em relação ao tamanho dos jogos. Colocando a maior parte do game no disco ou cartucho, não é necessário ocupar muito do HD ou SSD do seu console – algo que seria especialmente positivo nos poucos 667 GB disponíveis no PS5. Mas isso mudou.

Atualmente estamos vendo uma tendência que só tende a se espalhar cada vez mais, em que o disco do jogo acompanha um minúsculo arquivo que nada mais faz além de verificar que essa é uma cópia original. O jogador ainda tem que fazer todo o download do game e deixá-lo ocupando o mesmo espaço da sua compra digital.

O mercado de revendas não parece ser vantagem suficiente para manter a existência das mídias físicas, então só nos resta esperar mesmo pela sua morte? Pela morte do modelo tradicional, sim; da existência do formato como um todo, não. Isso porque ainda não falamos da principal vantagem desse tipo de jogo e provavelmente o que ainda o mantém vivo: o valor emocional.

Às vezes morte significa transformação

A possibilidade de revender seus jogos ou de comprar games usados mais baratos certamente é um atrativo importante para as mídias físicas, mas a tendência do mercado nos mostra que o principal apelo do formato ainda é o afetivo.

Digo isso porque podemos observar as famosas edições de colecionador ficando cada vez mais comuns para grandes jogos. São pacotes que acompanham não apenas o game, mas todo tipo de item bônus para aumentar o valor da aquisição e a apreciação pelo título. O foco aqui está longe do custo x benefício, afinal essas edições são bem mais caras. A ideia é mirar num público mais de nicho, os grandes fãs de uma franquia ou pessoas com dinheiro especialmente empolgadas para um novo jogo.

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A maioria desses compradores não está pensando na possibilidade de revenda. Eles querem ter um objeto físico – seja para exibir ou guardar – simbolizando o carinho e a importância que determinado jogo ou franquia tem em suas vidas.

Vale ressaltar aqui que temos uma importante produtora que baseia todo seu modelo de negócios no valor afetivo de certos jogos, a Limited Run Games.

A Limited Run foca em criar edições físicas e especiais de pequenos jogos indies populares que normalmente nunca teriam uma mídia além da digital. A empresa também busca reviver lançamentos antigos com ports para plataformas atuais, e fazendo cópias físicas desses jogos também. Não é segredo que a produtora abusa da nostalgia em seus conteúdos promocionais e marketing, sabendo que esse é um dos principais apelos do formato.

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Realmente parece que a mídia física está caminhando para a morte, mas isso é apenas o fim do formato de distribuição que nos acostumamos no passado. Dessa morte já podemos ver um renascimento, uma transformação desse tipo de game num produto de nicho. É algo que podemos comparar com os discos de vinil, que estão longe de ter a popularidade que um dia tiveram, mas certamente ainda estão por aí, firmes e fortes.

Para este autor, o nicho das edições especiais e de colecionador é uma forma digna para um formato de jogo pelo qual tenho muita nostalgia e carinho continuar existindo. Considero extremamente importante, no entanto, que as produtoras e lojas digitais encontrem maneiras de preservar seus jogos pelo bem da história do videogame – que muito bem faz parte da história humana. Mesmo que um título não possa mais ser comprado, ele deveria poder ser revisitado em museus e experiências similares. Não podemos admitir que os códigos fontes de verdadeiras obras de arte, como Silent Hill 2, continuem a ser perdidos pra sempre.