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A nostalgia ainda é uma das principais cartadas nos videogames

Jogos podem ser a mais poderosa mídia a brincar com memórias e evocar momentos marcantes, bastam serem feitos com imersão e o tom certo

por Dan Schettini
A nostalgia ainda é uma das principais cartadas nos videogames

Quantas vezes você ligou seu videogame, sentou no seu cantinho favorito com o controle em mãos e abriu aquele sorriso quando se deparou com um elemento que te transportou para algum lugar no passado? Seja uma franquia familiar, uma mecânica específica, uma simples referência… ou apenas um momento, com um amigo que você não via há anos, sentado no sofá e conversando, como se o tempo não tivesse passado. 

Poucos sentimentos são mais poderosos do que a nostalgia. 

Não à toa, nas diferentes mídias do entretenimento encontramos, com certa facilidade, esses tais elementos que ativam nossas lembranças. É fácil seduzir o consumidor com toques de um tempero que ele já conhece. Trazer familiaridade e mesclar o novo com o clássico, fazer com que o sorriso de canto de boca venha naturalmente ao pescar uma situação que faça alusão a uma recordação já conhecida — nem sempre é daquelas mais importantes, mas, no fundo, sempre esteve em algum canto das nossas mentes —, estas são maneiras certeiras de costurar uma relação forte com uma história.

Recentemente vimos a nostalgia sendo perfeitamente aplicada com o fenômeno da Netflix, a série Stranger Things. Os Duffer Brothers souberam como preparar um coquetel de ideias, que abraçaria de forma calorosa toda uma geração influenciada por clássicos dos anos 80 e, de quebra, uma geração posterior a essa, que pegou as rebarbas dessa época, através de ecos e da convivência com quem viveu a pleno vapor aquele período. 

Transportando para a indústria de games, tivemos dois momentos que reforçaram o quanto o retrô podia ter espaço para traçar os caminhos do que estava sendo feito de novo:

  1.  A ascensão retumbante dos jogos independentes, que beberam, por vezes, diretamente dos clássicos e eternos pixel arts, trazendo joias poderosíssimas como Shovel Knight e mais tarde, em uma diferente linha artística, o amado Cuphead;
  2. A era dos remakes/remasters, que vem mostrando o quanto o público gamer é sedento por reviver seus jogos e personagens queridos em novas gerações, seja através das reproduções fidedignas das remasterizações ou mesmo as reimaginações, que atualizam e permitem um novo significado aos marcantes títulos do passado.
Personagens de Stranger Things brincando de RPG de mesa
Stranger Things (2016)

Nostalgia nos games: quais elementos a compõem?

O novo sendo feito usando o clássico como base. Isso é uma tônica que talvez não deixemos de ver e experimentar. Os caminhos do futuro sempre passarão por estradas já conhecidas, mesmo quando as decisões artísticas se voltarem para direções jamais vistas até aqui. Mas todos esses traços, do visual pixelado dos indies às trilhas sonoras que ensaiam acordes familiares, ou do refeito Leon de Resident Evil 4, funcionam muito bem como elementos estéticos. É vistoso, é poderoso. Bate forte aos olhos. E daí é natural que os comentários caminhem entre os atalhos dos debates habituais, que nos fazem pensar na jogabilidade, no quanto o novo faz bem quando aplicado a um remake e no quão frequente é a pauta mecânica x estética — como se fosse apenas o que importa ou como se uma quase disputasse com a outra.

Mirar o olhar em um jogo como Undertale e não fazer uma associação direta aos RPGs que serviram como influência, como Earthbound, é realmente muito difícil. Mas a magia da nostalgia não é puramente visual. E não é puramente mecânica também. A nostalgia explode em sua forma mais fulminante quando é aplicada com uma intenção que também é narrativa. E isso, quando funciona, é mágico. Funciona bem no próprio Undertale, quando ele te coloca contra a parede, evocando sua memória muscular e suas definições de “conceitos de RPG” para, sem piedade, virar tudo ao contrário. Te lembra muitas coisas, te provoca… mas é novo. É tudo subtexto, é tudo elegante. É tudo nostálgico, mesmo sendo difícil de explicar exatamente o motivo. É como se essa sensação de nostalgia estivesse em cada canto da obra, justamente por conversar com o jogador através das dinâmicas e não apenas do que salta aos olhos.

Surfando em outro exemplo, recentemente tive a oportunidade de jogar um game com uma premissa simples, mas que, de forma genial, aplica a nostalgia narrativa de maneira muito classuda. Se trata do indie australiano Unpacking.

quarto de Unpacking, jogo indie australiano
Unpacking (2021)

Unpacking trabalha, mecanicamente, com conceitos de fácil digestão. É um título sobre organização, onde o jogador entra na pele de uma personagem que está em constante mudança, tanto de vida quanto de casa. Na prática, precisamos ajudar a protagonista a desencaixar seus pertences e organizar eles em sua nova casa. Cada fase de Unpacking se passa em um ano diferente, sempre com um salto temporal denotando o quanto a vida dela mudou, evoluiu e foi se adaptando a tais mudanças. Logo a premissa que soava um tanto simplória é devorada por um forte sentimento… nostálgico. 

Tal qual Stranger Things faz, em entregar um leque de elementos que fazem o espectador se emaranhar em associações emotivas diretas, Unpacking logo te puxa para dentro. Seja pelo console portátil de cabeceira que acompanha a vida da personagem, de casa em casa, com o passar dos anos, ou a pelúcia favorita, os objetos pessoais… o tempo vai passando no jogo e você logo percebe que ele fala muito sobre o que levamos conosco para nossas  vidas. A trama fala muito sobre isso, mesmo sem verbalizar. É muito sobre o que nós temos e o que nos faz ser nós mesmos, pois tudo é história. E é como se a Witch Beam, estúdio por trás do título, tivesse aplicado — talvez de forma não intencional — a ideia da cápsula do tempo. Sabe, quando você monta uma caixa com pertences que lembram fases da sua vida, enterra e no futuro você reencontra a “cápsula”, para ativar essas lembranças? Pois é. É forte pensar que, no fim, toda a nossa trajetória pode ser resumida a pequenos totens que cabem em uma caixinha. Essa simples trajetória é muito intensa.

Ao terminar Unpacking senti que havia experimentado um exemplo fortíssimo de nostalgia intencional. E isso ia muito além dos objetos espalhados. Era, em essência, narrativa. A conexão ali passava sim pelo console antigo no móvel da sala mas, para mim, soava muito mais intenso ao constatar que todas as mudanças, fases da vida e experiências daquela história — que não era a minha! — facilmente criavam a tal associação com a minha vida. Isso é muito mais forte que um personagem da Marvel aparecendo um pouquinho em um filme e fazendo a gente pular da cadeira. E é até mesmo muito mais forte que o pôster da sua banda favorita da adolescência em The Last of Us Part II.

Ellie admirando pôster do Pearl Jam em The Last of Us Part II
The Last of Us Part II (2020)

Seja como for, brincar com o passado é sempre poderoso. Os videogames, como uma mídia que pode ser imersiva com certa facilidade, têm nas mãos as cartas certas para fazer essa ponte poderosa entre suas obras e o jogador. Eu gostaria de ver mais jogos como Unpacking. Mas talvez ainda precise me recuperar. Afinal, a saudade também dói.