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Jogos brasileiros vivem grande momento: isso vai continuar?

Aos poucos os jogos produzidos por aqui têm conquistado seu espaço. O que podemos esperar dessa tendência?

por João Gabriel Nogueira
Jogos brasileiros vivem grande momento: isso vai continuar?

O desenvolvimento de jogos brasileiros, como a maior parte das coisas que fazemos por aqui, não é fácil. Mas é só olhar para lançamentos recentes que podemos observar que os títulos produzidos no nosso território estão vivendo um grande momento, como nunca vimos antes.

Desde lançamentos retrô com a famosa arte pixelizada – como Elderand e Chroma Squad – até jogos realistas com mais ambição nos gráficos – como Dolmen e Fobia – temos tido estreias para todos os gostos. Como foi a jornada que nos trouxe a até este momento? E o que podemos esperar do futuro? Pegue um copo d’água do filtro de barro ou um café no copinho de pinga e vamos debater no artigo!

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Direto do túnel do tempo

Como seria de se imaginar, a história dos primeiros jogos brasileiros se mistura completamente com a própria história da chegada do videogame ao Brasil. Mas nosso país passou por um processo bem peculiar que não foi tão comum, devido à dificuldade de importar as máquinas e jogos para cá num primeiro momento.

Grandes empresas como Philco, Gradiente e Sharp concorriam para fazer parcerias com as estrangeiras a fim de trazer suas tecnologias para cá, ou ao menos versões delas. É dito que o primeiríssimo jogo digital a ser criado por aqui foi o TVBol em 1976, um clone do Pong.

Os “clones”, aliás, foram importantíssimos para a chegada e popularização do videogame no Brasil. Enquanto a maioria dos brasileiros nunca tinha visto um Nintendo Famicom de perto – o famoso “nintendinho 8bits” – muitos já conheciam os “Famiclones”, consoles que copiavam a arquitetura do produto da Nintendo e eram capazes de rodar muitos de seus jogos.

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Olha o famoso PolyStation aí

Uma empresa importantíssima para a popularização dos games fora dessa “área cinzenta” do mercado foi a TecToy. A companhia foi fundada em 1987 e conseguiu emplacar uma parceria histórica com a Sega, para trazer o Master System oficialmente para cá. Esse feito marcaria não apenas a presença do console nas casas das pessoas, mas também o desenvolvimento de versões nacionais de jogos bem famosos.

Mônica no Castelo do Dragão e Chapolim x Drácula: Um Duelo Assustador são exemplos de jogos que faziam modificações gráficas em cima de outros títulos para ficarem mais atrativos ao público brasileiro. É algo como as hack-ROMs, tão populares atualmente, mas tudo com autorização da Sega e licenciado pelas empresas envolvidas. O jogo da Mônica foi feito em cima de Wonder Boy in Monster Land, enquanto o game do Polegar Vermelho foi uma modificação de Ghost House.

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Esse tipo de modificação bem sucedida que pavimentou a criação de Férias Frustradas do Pica-Pau. Diferente de seus antecessores, esse game foi inteiramente desenvolvido e produzido pela TecToy para distribuição nos Master System e Mega Drive do Brasil.

Foi com a criação dessas versões em cima de jogos prontos ou títulos simples que os primeiros desenvolvedores brasileiros começaram a despontar. Depois de uma abertura comercial maior e um influxo de hardware e games chegando ao nosso país por canais oficiais, muitas dessas pessoas começaram a perseguir a criação de jogos como carreira profissional, mas a prática do hack-ROM – famosa mundialmente – manteve bastante força por aqui. Não podemos deixar de mencionar o Bomba Patch, vendido até hoje nos muitos PS2 que temos por aqui.

O carnaval dos indies

A definição dos títulos independentes como uma respeitável categoria no mercado certamente é o que possibilitou a primavera dos jogos brasileiros que atualmente estamos vendo – e isso principalmente por causa da relação investimento vs. expectativa.

É caro fazer games. Em um mercado onde não há grandes incentivos nem produtoras gigantescas como o nosso, essa realidade é sentida com muito mais força e atrapalha muito na produção de projetos chamativos cobertos de marketing.

A popularização do segmento indie de jogos, no entanto, mostrou aos jogadores que existe toda uma pletora de opções que prometem pouco e entregam muito. Esse abrir de olhos e expansão dos horizontes se reflete na boa vontade que os jogadores passaram a ter com os games feitos por aqui. Essa diferença é observada, por exemplo, por Uilson Fernandes, criador de Elderand.

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Elderand vem fazendo sucesso

Para quem não conhece, Elderand é um metroidvania em pixel art que tem se saído muito bem em suas avaliações na Steam. Mas não só isso, o jogo tem se dado bem nas vendas também, conforme comenta Fernandes. O criador diz que ficou surpreso com a recepção do game aqui no Brasil, que está em segundo lugar em vendas de unidades. Os EUA estão em primeiro. 

O que podemos observar é que o estabelecimento dos jogos indie como gênero ajudou muito na boa vontade com games de menor investimento; E isso é ainda mais alimentado pelo aparecimento de títulos conhecidos e respeitados como Fobia.

Thiago Matheus é um dos co-fundadores do estúdio Pulsatrix, criado para o desenvolvimento e produção de Fobia: St. Dinfna Hotel. Falando de seu trabalho, ele avalia como foi rápida a mudança na percepção de gamers em relação aos jogos brasileiros. Ele afirma que a aceitação do público melhorou muito em relação aos projetos daqui, e que isso tem sido possibilitado por lançamentos de qualidade made in Brazil – o que inclui o próprio Fobia.

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Fobia: St. Dinfna Hotel é uma experiência incrível

Mas é interessante ressaltar ainda que existe muito preconceito infundado contra os jogos brasileiros. Encontramos games independentes malfeitos vindos de todos os lugares e esperar que algo não seja bom só porque foi feito aqui não se justifica quando levantamos os fatos.

Além dos bons exemplos de jogos, podemos elencar diversos brasileiros de carreira internacional, trabalhando tanto diretamente na área dos games como no segmento mais abrangente de modelagem 3D. O próprio Thiago, da Pulsatrix, lembrou o exemplo de Rafael Grassetti, diretor de arte para a Sony que é responsável pelos visuais em God of War. Também citou Kris Costa, carioca que trabalhou para a ILM fazendo alguns dos designs de criatura mais icônicos que você conhece – como o King Kong dos filmes mais recentes, personagens em Transformers e até em Vingadores.

O que podemos observar é que o Brasil transborda de talentos e grandes nomes, que acabam sendo exportados pela falta de oportunidades e vagas na área por aqui. Com a tendência atual da criação de jogos ficando cada vez mais forte em nosso país, é bem mais possível o aparecimento de grandes nomes oferecendo seus dotes por aqui mesmo, resultando em mais games de imensa qualidade.

A jornada pro jogo

É interessante observar como nesses dois exemplos – tanto um título menor como Elderand como um maior como Fobia – existem muitas semelhanças no processo para a criação dos jogos, especialmente nas primeiras etapas.

Tanto Thiago Matheus como Uilson Fernandes começaram a criar seus jogos nas horas vagas, enquanto mantinham seus empregos em outras áreas para garantir os boletos no fim do dia. O criador de Fobia queria fazer um escape room para ampliar seu portfólio de modelagem 3D, enquanto o pai de Elderand queria apenas aprender o básico do desenvolvimento de jogos, enquanto mantinha seu emprego de designer gráfico. Matheus chegou a fazer modelagem para alguns games antes, enquanto Fernandes não tinha experiência profissional.

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Nos dois casos os projetos foram avançando e atraindo novas parcerias antes de seus desenvolvedores resolverem apostar de vez em tentar transformá-los num jogo completo, um produto comercial. E é nessa etapa que entra a questão do financiamento.

Elderand foi pelo caminho “burocrático”, por assim dizer. Fernandes batalhou um financiamento junto à Ancine, que tem um programa de investimento em jogos desde 2016. O desenvolvedor explica que são três níveis diferentes de financiamento, e ele optou por se candidatar ao menor deles, para ter mais chances de conseguir.

Uma das regras do financiamento, no entanto, é o estabelecimento de uma empresa, e isso serviu de incentivo para a parceria com o estúdio Sinergia no desenvolvimento de Elderand. No fim ele conseguiu o investimento público, mas o valor mínimo se mostrou insuficiente. Foi assim que o game acabou sendo produzido também pela Graffiti Games.

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Fobia, como muitos já sabem, foi pelo caminho do financiamento coletivo. Thiago Matheus explica que a equipe tinha o plano de pagar o game completamente pelo Catarse. Mas, conforme o projeto ficava mais popular, maior e mais ambicioso, logo chamou a atenção também de grupos de investimento. Foi com o incentivo de uma dessas empresas que Fobia pôde ser completamente financiado.

Para o próximo projeto da Pulsatrix, A.I.L.A., os desenvolvedores pretendem voltar ao financiamento coletivo pelo Catarse, e vão oferecer mais informações sobre o game quando começar.

O investimento do público é o caminho seguido também pelo Bágdex, o famoso “Pokémon brasileiro”, atualmente recebendo apoio de futuros jogadores em parceria com a Nuuvem – loja brasileira de jogos digitais.

Wagner Tamborin – o Bág – também conta que iniciou o projeto como hobby, enquanto trabalhava com outras coisas na área de design. Muitos leitores vão se lembrar que ele desenhava os monstrinhos e divulgava há anos, antes de efetivamente emplacar algumas parcerias e dar seguimento à criação de um jogo propriamente dito.

O que temos em comum nessas três histórias e tantas outras que já conheci ao longo de anos trabalhando na área de jornalismo de games é que o desenvolvimento de jogos brasileiros, de maneira geral, sempre seguiu esse caminho: pessoas apaixonadas correndo atrás de projetos por fora enquanto tinham que manter outros empregos para garantir seus boletos.

O que podemos observar com otimismo, no entanto, é que tanto um projeto grande como Fobia, quanto um projeto menor como Elderand, deram certo e atualmente seus desenvolvedores podem trabalhar em tempo integral com games, realmente se considerando desenvolvedores profissionais. Além do já anunciado projeto A.I.L.A. da Pulsatrix, Fernandes já se prepara para seu próximo jogo, que ainda não foi revelado.

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A.I.L.A é o mais novo projeto da Pulsatrix, de Fobia

Os dois desenvolvedores por trás dos jogos já lançados comentam que nos últimos 4 ou 5 anos a evolução do cenário de games no Brasil foi muito rápida, e já são encontradas vagas para pessoas que procuram trabalhar diretamente na área.

Algum dia teremos um AAA brasuca?

Existe um certo consenso de que realmente o mercado brasileiro de jogos vive um momento de rápido crescimento, e os desenvolvedores concordam. Tanto na oferta como na procura, os games feitos por aqui vivem seu melhor momento. Com esse momento otimista, uma pergunta torna-se basicamente inevitável: será que veremos um jogo de nível AAA sendo feito por aqui em breve?

Fiz essa pergunta tanto para o Thiago como para o Uilson e as respostas foram interessantes por serem semelhantes, mas com perspectivas diferentes. Ambos desenvolvedores imaginam que podemos ver um game de nível AAA feito por aqui nos próximos 10 anos, mas os pensamentos foram diferentes.

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O mais recente God of War é um exemplo de AAA bem sucedido.

O co-criador de Fobia foi bem otimista em sua perspectiva. Ele acredita que certamente teremos um game AAA na próxima década, devido à riqueza do mercado brasileiro de jogos e uma perspectiva de que não vai parar de crescer. Para Thiago Matheus os brasileiros já consomem muitos games e isso vai certamente se refletir em um projeto ambicioso como esse aparecendo em breve. O desenvolvedor inclusive ressalta que Fobia atualmente está vendendo mais no Brasil do que nos EUA.

Uilson Fernandes, por sua vez, observa o mesmo aquecimento da procura de jogos em nosso país, mas acredita que o ecossistema envolvido na criação de um game desse porte ainda precisa avançar um tanto no Brasil. Ele também imagina que nos próximos 10 anos isso pode mudar ao ponto de sair um game AAA feito aqui, só que observa que em países como EUA e Japão já existe toda uma fórmula aprimorada ao longo de anos para esse tipo de produção. Até num continente mais rico como a Europa, temos pouquíssimos exemplos de um AAA bem sucedido.

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The Witcher 3: Wild Hunt é um exemplo de AAA europeu

São perspectivas bem interessantes que se baseiam nos fatos que a maioria dos jogadores pode observar. Se levarmos em conta a velocidade que o mercado de jogos brasileiros se expandiu, com um salto que só precisou de 4 ou 5 anos para acontecer, não podemos ignorar a possibilidade de vermos esses avanços continuarem no mesmo ritmo. E, se isso der certo, realmente um AAA brasileiro nos próximos 10 anos não é algo impossível de se imaginar.

O que não pode ser perdido de vista, entretanto, é o que proporcionou esse avanço e aquecimento no mercado brasileiro de jogos para começar: a qualidade dos produtos.

A explosão dos indies como um segmento do mundo dos games preparou o terreno para os desenvolvedores brasileiros brilharem, mas foi com o lançamento de games aclamados pelo público que realmente foi mudada a imagem dos games feitos por aqui. Somente continuando essa tendência que poderemos garantir não perder o ritmo da expansão do mercado de jogos brasileiros.

Com mais games de qualidade sendo lançados ano após ano poderemos ver o embalo das produções brasileiras continuar até culminar na criação de um título AAA capaz de colocar de vez os nossos criadores nos holofotes internacionais.