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A E3 moribunda e o futuro dos eventos presenciais

Como os últimos suspiros do “ex-maior” evento de games do mundo vão repercutir na indústria?

por João Gabriel Nogueira
A E3 moribunda e o futuro dos eventos presenciais

Dizer que a E3 não é mais o que um dia já foi é um eufemismo. O evento de games, que já foi o maior do mundo com o tema, passou por dois cancelamentos nos últimos três anos e agora não consegue mais atrair expositores de impact. Segundo rumores, seu retorno neste ano será ignorado pela gamíssima trindade – PlayStation, Xbox e Nintendo.

Não dá para derrubar um gigante como a E3 sozinho. Existe uma série de fatores e motivos que levaram à derrocada do histórico evento, que vamos analisar neste artigo. Além disso, vamos debater o que isso significa para o futuro de outros grandes eventos presenciais e para a própria E3 – se é que a feira ainda tem um futuro.

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E3: uma breve história

A Electronic Entertainment Expo (EEE➡ três Es ➡ E3) surgiu para atender às necessidades dos criadores de jogos que buscavam um espaço respeitável para mostrar suas novidades e produtos.

Por muito tempo, a Consumer Electronics Show (CES), maior feira de tecnologia do mundo, era o principal local onde os grandes executivos da Sega e da Nintendo tentavam mostrar suas novidades nos EUA. Sentindo-se menosprezados pelo evento num momento em que os games já estavam bombando – os anos 90 – líderes da indústria começaram a se organizar para criar algo próprio.

O movimento coincidiu com a época da formação da Entertainment Software Association (ESA), uma união entre produtoras para tentar estabelecer uma padronização na classificação indicativa dos jogos e escapar de tentativas de regulação do governo nos EUA. 

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Pat Ferrell, CEO da Infotainment World na época, e Doug Lowenstein, chefe da ESA no mesmo período, trabalharam juntos na realização da primeiríssima E3, em maio de 1995. A Sony estava lá para promover o a estreia do PlayStation, bem como a Sega com o Saturn. Foram as duas primeiras grandes a apostarem no evento, com Microsoft e Nintendo tendo uma presença reduzida.

A E3 1995 não começou pequena. Logo na primeira edição do evento foram mais de 400 exibidores, com mais de 40.000 visitantes, mostrando a necessidade da indústria para um evento próprio de games.

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A ideia não era apenas mostrar futuros lançamentos de jogos e consoles para os consumidores, mas também trabalhar na imagem dos games como um todo, mostrando a grande variedade do universo de possibilidades dessa forma de entretenimento e tentando afastar o estigma das pessoas eternamente preocupadas com a “violência dos jogos”. O evento também foi uma ótima maneira da ESA de angariar fundos e se estabelecer como a entidade que é até hoje. Os rendimentos da ESA, aliás, são um importante ponto que será retomado mais tarde neste artigo.

Ao longo dos anos a E3 só cresceu. A competitividade natural das produtoras de jogos resultou em eventos cada vez mais espetaculares e a tola noção de que seria possível “ganhar a E3”. As empresas competiam para ter as apresentações mais chamativas e aparecerem nas manchetes do dia seguinte como as “vencedoras” de um evento que não aponta campeões. Foi se despejando cada vez mais dinheiro a cada ano, e o aparecimento de celebridades virou não apenas algo comum, mas até esperado.

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Como uma coisa sempre puxa a outra, o sucesso da E3 foi ajudando a impulsionar o aparecimento de outros eventos de games. Produtoras começaram a tentar promover os próprios jogos sem precisar dividir os holofotes, e organizadores de outras regiões começaram sua busca para se tornarem a E3 de seus respectivos países.

Outros eventos presenciais

Assim como a popularidade dos games permitiu a criação da E3, o crescimento da E3 impulsionou a popularidade dos games. Conforme a indústria ficava cada vez maior, outros eventos começaram a aparecer e suprir a necessidade das produtoras de levantar o hype de seus produtos mais de uma vez ao ano.

A primeira Tokyo Game Show (TGS), por exemplo, aconteceu em 1996, logo no ano seguinte da primeira E3. É difícil mensurar até onde foi o impacto do grande evento ocidental em uma feira do outro lado do mundo, mas lembrando que Sony e Sega – duas gigantes da época com sede no Japão – foram grandes apoiadoras da E3 desde o início, é de se imaginar que as companhias quiseram repetir a dose em sua terra natal.

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Também é interessante citar a Game Developers Conference (GDC). Esse é um evento de jogos voltado diretamente para seus desenvolvedores, o que implica menos anúncios e apresentações bombásticas de marketing. A conferência, na verdade, começou bem antes da E3, mas é perceptível o “antes e depois” da criação da maior feira de games do mundo.

A GDC, na verdade, começou como CGDC – Computer Game Developers Conference, lá em abril de 1988. O evento começou bem pequeno, mas foi fazendo sucesso, mudando de lugar a cada ano para acomodar seu crescente número de participantes, que saiu de 525 para os mais de 2 mil em sua época “pré-E3”. Em 1996, no entanto, no ano seguinte à estreia da E3, a CGDC quase dobrou em número de participantes, indo para as voltas de 4 mil pessoas. Foi em 1999 que eles abandonaram o “Computer” do nome e passaram a se chamar GDC. O evento ainda se volta muito para desenvolvedores, mas passou a ter anúncios e premiações para atrair o interesse do público.

Outra conferência de destaque é a Gamescom, que acontece anualmente na Alemanha. Mais de dez anos depois da primeira E3 e com muitos organizadores tentando fazer eventos próprios, a Gamescom conseguiu se tornar um dos principais festivais de anúncios de games na Europa, começando em agosto de 2009. O evento reporta a participação de mais de 260 mil pessoas no ano passado.

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Acontecendo pouco tempo depois da E3, a Gamescom vinha sendo usada pelas produtoras para se aprofundarem nos anúncios que normalmente são feitos primeiro nos EUA. Novos trailers com gameplay ou entrevistas estendidas para os games revelados na E3. Assim como a GDC, o evento é muito usado também para revelar hardware – na primeira Gamescom da história foi revelado o PS3 Slim e no ano passado foi mostrado o DualSense Edge pela primeira vez.

Além desses exemplos, é interessante ressaltar tantos outros eventos presenciais especialmente voltados para jogos e comunidades específicas, como a tradicional QuakeCon ou BlizzCon. Além deles, temos várias outras feiras enormes onde os jogos foram ganhando espaço pela sua imensa popularidade, especialmente aqueles voltados a um público considerado “nerd”, como a CCXP.

Os eventos online e a queda da gigante

Conforme a E3 ia crescendo ao longo dos anos, o número de pessoas com acesso à internet também. Com cada vez mais computadores conectados e, depois de 2007, pessoas carregando telas no bolso, a maioria dos eventos passou a transmitir suas apresentações pela rede também – e isso inclui a E3.

É interessante ressaltar aqui que não é apenas o crescimento do acesso à internet que garantiu que a E3 teria tantos concorrentes. Não adiantaria nada várias produtoras e outros organizadores fazerem seus próprios eventos se as pessoas não tivessem interesse neles. O marketing ainda estaria dependente de um grande evento como a E3 para chamar a atenção de mais jogadores.

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O que podemos observar é que, ironicamente, o crescente sucesso do mercado de games operou como uma faca de dois gumes para a E3. Quanto mais pessoas jogavam e se interessavam por games, mais ajudava a E3 a crescer, porém, a partir de certo momento, a popularidade dos games começou a ficar grande o suficiente para conseguir a atenção de todo mundo mesmo sem um grande evento unificador.

A Nintendo foi uma das primeiras a começar a ignorar a E3 para focar em suas Direct, que, como diz o nome, são apresentações diretas de seus produtos. Não demorou muito para outras produtoras seguirem o caminho – como o PlayStation com as State of Play – percebendo que são grandes o suficiente para gerar hype em seus eventos sozinhas, sem precisarem se juntar a outras.

A E3 já não era mais considerada o que um dia já foi pelas voltas de 2018 e 2019, e então veio a pandemia do COVID-19 como um golpe quase fatal para a organização do evento.

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Enquanto várias produtoras questionavam até onde valia a pena continuar participando do evento, veio a necessidade do isolamento social e a gigantesca feira dos games nem aconteceria em 2020.  Foi o incentivo que faltava para algumas tentarem realizar apresentações próprias e começarem a criar seus formatos únicos, com muitas das empresas percebendo que isso daria certo. Até companhias menores se reuniram para fazer suas próprias versões de apresentações online, com a NGPX e a Guerrilla Collective sendo exemplos notáveis.

É muito importante ressaltar aqui que não foram apenas fatores externos à E3 que fizeram o evento encolher tanto. Há anos – bem antes de qualquer pandemia – as produtoras vinham reclamando em rumores e boatos dos preços que precisavam pagar para participar da E3. Os investimentos ficavam cada vez maiores para criar apresentações grandiosas o suficiente para se destacar, ao mesmo tempo que tinham que pagar cada vez mais para a ESA também.

Não temos registros oficiais dessa vontade das empresas de deixarem a E3 desde antes, mas podemos perceber indícios com facilidade. A EA, por exemplo, saiu da E3 mas continuou querendo surfar no hype da feira, realizando suas EA Play quase nos mesmos dias. A Ubisoft Forward e a Guerrilla Collective já fizeram o mesmo.

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Falando no momento da realização dos eventos, deixar a E3 traz mais uma vantagem para as produtoras de jogos no sentido de poderem mostrar suas novidades quando quiserem. Enquanto a E3 era a líder absoluta da divulgação de games, as empresas tinham que se obrigar a ter algo para mostrar em junho todo ano, para não passar vergonha no evento. 

Outro indício de que as produtoras já vinham se distanciando da E3 está na Summer Game Fest e no The Game Awards, os eventos de Geoff Keighley. A ESA já vinha transmitindo apresentações de sua feira de games online, então porque tantas empresas preferiram migrar para outros eventos mesmo assim? A Summer Game Fest já tem sido apontada como uma “substituta” da E3 há um bom tempo.

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No fim das contas, parece-me que a possibilidade de realizar eventos solo online ou de participar de outros eventos grandes já era uma vontade das empresas. A internet e os jogadores se acostumando a acompanhar diferentes apresentações só vieram cumprir essa vontade.

O que esperar do futuro?

Uma morte completa da E3 não é impossível, mas no momento não parece estar nos planos. A edição deste ano do evento provavelmente será determinante para a ESA decidir se a tradicional feira ainda tem um futuro ou não.

Além das grandes apresentações das companhias, a E3 sempre foi muito importante também por ser uma feira presencial de jogos, onde jogadores podem confraternizar e experimentar vários games antes do lançamento. Essa parte parece continuar sendo um importante atrativo para as pessoas, mas até aí a E3 tem enfrentado contragolpes.

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Atualmente é plenamente possível oferecer as demos dos jogos da feira online, para as pessoas experimentarem em casa. Até sessões fechadas de jogatina para jornalistas são realizadas pela internet em muitos casos. O que resta, então, é uma feira para pessoas com o mesmo hobby se encontrarem e confraternizarem, mas será que isso sozinho sustenta uma E3?

A verdade é que a E3 da nossa infância realmente já morreu. O que resta para a ESA agora é adaptar sua feira da melhor forma possível aos tempos e necessidades atuais, o que provavelmente resultará numa versão bem menor do evento.

Com um cenário tão pulverizado de apresentações, que têm oferecido às produtoras o hype que desejam por um investimento muito menor, é difícil de imaginar elas voltando ao formato antigo. É triste ver um dos grandes pilares da história dos games morrendo aos poucos, mas se hoje ainda temos eventos como a Summer Game Fest é sinal que a E3 não soube se reinventar e acompanhar as transformações que ocorrem naturalmente com o tempo.

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Grandes momentos da E3

Falar da E3 sempre me deixa nostálgico, então quero concluir este artigo destacando alguns dos grandes momentos da E3 ao longo dos seus quase 20 anos. Afinal, talvez essa lista acabe se tornando um epitáfio, não é mesmo?

  • E3 1995: primeira edição do evento, são mostrados Chrono Trigger, Killer Instinct e Virtua Fighter. A Sony revela o preço e data de lançamento do PlayStation.
  • E3 1997: grandes clássicos revelados: Half-Life, Metal Gear Solid, Resident Evil 2 e GoldenEye 007.
  • E3 2000: Microsoft anuncia o Xbox e a Sony anuncia a chegada ao ocidente do PlayStation 2, que viria a se tornar o console mais vendido da história.
  • E3 2003: é revelado o importantíssimo Half-life 2 e a Sony arrisca no mercado de portáteis com o PSP.
  • E3 2004: anunciados dois dos jogos mais aclamados da geração do PS2 – o primeiro God of War e Resident Evil 4.
  • E3 2005: o evento completa 20 anos e a Sony faz o anúncio oficial do PS3, pouco tempo depois da Microsoft queimar a largada com o Xbox 360.
  • E3 2010: Konami faz uma apresentação lendária.
  • E3 2013: Foco total na nova geração, Microsoft fala do Xbox One e Sony fala do PS4.
  • E3 2015: Duas verdadeiras “lendas” foram anunciadas depois de anos de especulação: Final Fantasy VII Remake e The Last Guardian.
  • E3 2019: Sony abandona de vez o evento. Temos a primeira grande revelação de Elden Ring e da presença de Keanu Reeves em Cyberpunk 2077 – além do anúncio oficial do Project Scarlett (o futuro Xbox Series X|S).
  • E3 2020/21/22: Os anos conturbados do COVID-19. O evento foi cancelado em 2020, teve um retorno apenas online em 2021 e deixou de ocorrer novamente em 2022.