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A História da Ember Lab e o desenvolvimento de Kena: Bridge of Spirits

A origem inusitada de um estúdio promissor

por Lucas Ribeiro (BladerKoyotte)
A História da Ember Lab e o desenvolvimento de Kena: Bridge of Spirits

Anunciado em junho de 2020, Kena: Bridge of Spirits foi um dos principais jogos que encantaram o público durante a revelação do PlayStation 5 no evento “The Future of Gaming”. Sua majestosa apresentação frequentemente comparada a animações de cinema fez com que seu trailer de anúncio alcançasse 4 milhões de visualizações no YouTube, superando até mesmo jogos Triple A da cerimônia.

Para a surpresa de muitos, essa não se trata de uma produção caríssima arquitetada por um estúdio conhecido ou experiente no mercado de videogames: Kena Bridge of Spirits é um indie e o primeiro jogo da Ember Lab – uma pequena equipe americana composta por 15 funcionários. A sua origem, no entanto, é o ponto chave para entendermos tamanha competência.

Um começo (bem) diferente

Os protagonistas dessa história são os irmãos Josh e Michael Grier, ambos nascidos na Califórnia. Josh é graduado em economia e trabalhou como gerente de negócios no Disneyland Resort, enquanto Michael seguiu como artista de efeitos especiais e diretor de filmes, construindo boa parte de sua carreira no Japão. Combinando suas competências, eles decidiram realizar o sonho em comum de criar o próprio estúdio e dedicarem suas vidas a produções autorais.

Mike e Josh Grier
Michael e Josh Grier | Imagem: Ember Lab Leadership Bios

Assim, eles fundaram em 2009 o estúdio Ember Lab, hoje localizado em Los Angeles. Porém, ele não foi criado com a intenção de produzir videogames, ao menos inicialmente. O principal objetivo de ambos era criar mundos e personagens através de animações e produção de filmes. Como o estúdio ainda precisava crescer financeiramente para alcançar suas maiores ambições, eles se especializaram na criação de comerciais animados para diversas empresas.

Apesar disso, eles se envolveram com a produção de jogos desde o princípio. Um de seus primeiros grandes trabalhos, em 2011, foi a criação de personagens para um jogo de celular da Coca-Cola, Crabs and Penguins. As animações para o jogo e para o comercial dedicado a ele foram realizadas no Pixar RenderMan, software utilizado pelo estúdio da Disney de mesmo nome (as similaridades não são à-toa).

A colaboração com a Coca-Cola permaneceu por anos, com a Ember Lab produzindo mais comerciais e realizando animações de personagens e cenários para Colonel Kart Racers, uma versão de um jogo de corrida para celular da Fanta em parceria com a KFC, uma rede de restaurantes fast- food dos Estados Unidos da América.

Isso permitiu que a Ember Lab iniciasse seu primeiro projeto original: o curta sci-fi Dust. Com uma história escrita pelos dois irmãos, o filme foi premiado por seus surpreendentes efeitos visuais, direção de arte e cinematografia. No entanto, sua realização só foi possível graças a uma campanha de financiamento coletivo no Kickstarter, pois a necessidade de maiores investimentos fez com que a produção se estendesse por anos. Dust foi lançado em 2014 e disponibilizado em 2016 no canal da Ember Lab no YouTube. A trilha sonora foi produzida pela Theophany, que futuramente seria compositora do jogo Oxenfree e, inclusive, de Kena Bridge of Spirits.

A partir de 2015, o estúdio passou a criar comerciais ainda mais complexos para a divulgação de tecnologias 4K da empresa chinesa Hisense, personagens do Ano-Novo Chinês para a própria Coca-Cola, um vídeo animado para a Major League Baseball e outra animação para a Eurocopa 2016. Entretanto, o grande ponto de virada para a Ember Lab não ocorreu através da colaboração com alguma corporação, mas sim por um grande trabalho independente como fãs de videogames.

A verdadeira paixão

Mike e Josh jogaram videogames durante a vida toda, sendo fãs do gênero de ação e aventura, mas havia entre eles um carinho especial por The Legend of Zelda. Essa foi uma das principais obras a servirem como inspiração para ambos. Em parceria com outros artistas e novamente com a produção musical da Theophany, a Ember Lab produziu o curta Terrible Fate (Terrível Destino), uma homenagem a The Legend of Zelda: Majora’s Mask (2000) que imagina como seria a origem sombria do personagem Skull Kid em um filme.

O resultado do curta foi muito maior que o esperado: publicado em novembro de 2016, ele se tornou viral e hoje conta com 11 milhões de visualizações no YouTube. Isso forneceu uma visibilidade que os irmãos Grier nunca imaginaram que fosse possível. Foi esse acontecimento que os fez assumirem a criação de videogames como o próximo passo natural da Ember Lab.

Com isso, deu-se o início do planejamento de Kena: Bridge of Spirits, o maior projeto de suas vidas. Por se tratar do primeiro jogo do estúdio, Mike dedicou anos à criação de um protótipo na Unity Engine junto de sua pequena equipe de programação para apresentá-lo a produtoras de jogos que pudessem se interessar pela ideia.

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Arte conceitual | Imagem: Ember Lab

Para isso, eles contaram com o auxílio de Tina Kowalewski, veterana da indústria que foi Diretora de Desenvolvimento de Produto na PlayStation, trabalhando em jogos como Journey, God of War: Chains of Olympus e Ghost of Sparta. Para a surpresa deles, muitas publicadoras já conheciam o curta de Majora’s Mask, mas levou cerca de oito meses para eles receberem alguma resposta significativa sobre uma colaboração comercial para o jogo.

Finalmente, o estúdio fechou um acordo de exclusividade para consoles com a Sony Interactive Entertainment, o que permitiu investimentos maiores para a contratação de mais funcionários e para a terceirização de alguns elementos. Entre as terceirizações, estava o estúdio vietnamita Sparx, com cerca de 400 funcionários especializados na criação de artes, animações e efeitos especiais para vários filmes e séries da Disney (MARVEL e Star Wars) e Warner Bros. e jogos como Demon’s Souls (PS5), Detroit: Become Human e Deus Ex: Mankind Divided.

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A equipe da Ember Lab em 2020 (14 pessoas) | Imagem: Ember Lab Company Overview

Começava o desenvolvimento pleno do jogo na Unreal Engine 4, utilizando majoritariamente o PlayStation 4 como base. O kit de desenvolvimento do PlayStation 5 foi oferecido apenas em 2020, quando a maior parte da produção já havia ocorrido. Outros softwares utilizados durante a produção foram o ZBrush, Houdini e Maya.

Infelizmente, a criação de Kena não esteve livre de polêmicas. Logo após sua revelação em 2020, o designer Brandon Popovich acusou a Ember Lab de ter falhado com promessas de pagamento e maior envolvimento na produção. Popovich afirmou ter criado 95% do código do jogo em 2017, mas a Ember Lab negou a veracidade das acusações e declarou que sua base foi projetada no protótipo da Unity Engine antes de contratá-lo. No momento, a situação segue inconclusiva.

A Ponte dos Espíritos

O jogo como um todo seria bem diferente no início. Os Rots – as pequenas criaturas que nos acompanham – seriam nossos inimigos e a própria Kena não existiria. Quando decidiram introduzi-la como protagonista, ela era uma criança sem muitos poderes que dependia dos Rots para se defender e passar por obstáculos, o que Mike Grier comparou ao jogo A Boy and His Blob, lançado para Wii em 2009.

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A Boy and His Blob foi inspirado pelas animações de Hayao Miyazaki, do Studio Ghibli | Imagem: Majesco Entertainment

Porém, ao contrário do que aparenta, a história de Mike e Josh carrega temas um tanto sombrios – como morte, superação pessoal, equilíbrio e redenção – que exigiriam a presença de uma protagonista mais madura, o que moldou a versão de Kena que conhecemos hoje.

O poder de guiar espíritos inquietos ao descanso final é o que leva a jovem guerreira a um vilarejo abandonado distante em que pessoas marcadas por traumas hesitam em aceitar o passado e seguir em frente, criando instabilidade entre o mundo físico e o espiritual. A temática, por si só, pode soar familiar em certas partes do mundo.

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Arte conceitual | Imagem: Ember Lab

Mesmo criando um universo fictício, o jogo carrega grandes influências de culturas asiáticas. Devido à familiaridade com o Japão, Mike introduziu diversos elementos da cultura japonesa, mas a maior referência veio do sudeste asiático. Jason Gallaty, compositor, se interessou muito pela sonoridade produzida pelo grupo Galeman Çudamani, artistas da ilha de Bali, no arquipélago da Indonésia.

A Ember Lab entrou em contato com o grupo, viajou para a ilha e propôs uma colaboração para a trilha sonora de Kena Bridge of Spirits. Por não ser familiarizado com videogames, o diretor do grupo não estava muito contente com a ideia, mas foi convencido ao saber das similaridades dos temas do jogo com a sua cultura. Portanto, houve um grande cuidado para a reprodução de músicas autênticas e respeitosas aos balineses.

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Galeman Çudamani com Jason e Mike | Imagem: Game Informer

Essa influência cultural também refletiu na essência de Kena: inicialmente, ela teria uma capa, porém, suas animações pareciam muito distrativas. Por isso, substituíram-na com um xaile, vestimenta originada na região da Caxemira (Índia, Paquistão e China) que pareceu mais coerente para um visual mais “prático e assimétrico”.

Mais relevante que isso, a filha do compositor do grupo balinês, além de cantar algumas músicas do jogo, foi escalada para interpretar a protagonista, criando uma proximidade ainda mais íntima com a cultura do sudeste asiático.

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Ayu Dewi Larassanti, musicista e dançarina balinesa que dá voz a Kena.
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Masashi Odate, ator de Dust e do curta de Majora’s Mask que retorna como Toshi, um dos espíritos aprisionados de Kena: Bridge of Spirits

Assim como em Ghost of Tsushima, os filmes do diretor japonês Akira Kurosawa também serviram como grande inspiração, especialmente Rashomon (1950) – uma história conhecida por apresentar diferentes pontos de vista. Segundo Mike, assumir as variadas perspectivas do povo do vilarejo que visitamos é um ponto crucial para Kena desvendar as verdades ocultas do local.

Se tratando de jogos, as inspirações em The Legend of Zelda para o design são óbvias – o curta de Majora’s Mask fala por si mesmo. No entanto, boa parte dos desenvolvedores também são fãs de Okami (Capcom), Sekiro, Dark Souls e Bloodborne (FromSofware), o que se refletiu na estrutura geral do jogo. Apesar de apresentar um bom desafio em sua maior opção de dificuldade, Kena está longe de almejar o uso de dificuldade orgânica presente nos títulos da FromSoftware, buscando ser um jogo “para toda a família”. Ao invés de um vasto mundo aberto, foi abordado um design linear expandido com áreas conectadas por uma grande área ou “hub”.

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O “vilarejo central” que conecta as áreas do jogo | Imagem: Ember Lab

A linha de chegada

É importante ressaltar que, além de ser um indie, Kena: Bridge of Spirits não carrega a proposta de ser enorme. Nas palavras dos irmãos Grier, ele pretende ser uma experiência rica que pode ser concluída em um fim de semana. Com cerca de 45 minutos de cenas tão bem trabalhadas quanto os filmes anteriores do estúdio, priorizou-se a qualidade ao invés da quantidade dentro dos recursos disponíveis no momento. Pequenas empresas, grandes negócios.

Após cinco anos de desenvolvimento, o primeiro videogame da Ember Lab será decisivo para garantir ou não um futuro brilhante ao estúdio. Porém, de forma justa com a própria equipe e com o escopo de jogo independente, seria sensato mantermos as expectativas moderadas e considerarmos que esse é apenas o início de mais uma longa jornada de uma equipe extremamente talentosa que extravasa potencial.

Kena: Bridge of Spirits será lançado em 21 de setembro para PlayStation 4, PlayStation 5 e PC (Epic Games Store).

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Referências