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As tentativas e erros dos jogos como serviço

Produtoras parecem ter adotado uma política de “vai que cola” no segmento

por João Gabriel Nogueira
As tentativas e erros dos jogos como serviço

“Não é apenas um jogo, é um serviço”. É com essa mentalidade que são feitos jogos como Destiny 2, Final Fantasy XIV, Marvel’s Avengers e até gratuitos de imenso sucesso, como Warframe e Fortnite. É também seguindo essa lógica que a Rocksteady aposta suas fichas em seu próximo game do universo Arkham, Esquadrão Suicida: Mate a Liga da Justiça.

Os jogos como serviço – também conhecidos pela sigla em inglês “GaaS” – têm ficado cada vez mais comuns, mesmo com histórias bem variadas de sucesso e fracasso. A tendência parece firme e forte, mesmo com tantos exemplos recentes de cancelamento, então vale a pena retomar um tema que já abordamos antes, mas dessa vez com uma nova perspectiva.

O que faz as produtoras apostarem tanto no segmento? Até onde vai essa tendência? E o que faz um jogo como serviço dar certo ou errado? Vamos debater essas questões em mais um artigo.

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O que é um jogo como serviço (GaaS)?

Como sempre, é interessante definir bem um tema antes de sair falando sobre ele. Os jogos como serviço – ou GaaS – podem ser caracterizados de diferentes maneiras, e muitas vezes um mesmo jogo pode ser referido por algumas pessoas como GaaS e por outras pessoas, não.

Simplificando o debate, o que caracteriza esse estilo de jogo é a intenção da produtora em mantê-lo sendo jogado por um grande período de tempo, geralmente anos. Isso é feito com a disponibilização de novos conteúdos periodicamente, na maior parte das vezes gratuitos.

A intenção nos GaaS não é aumentar o rendimento pela venda de conteúdos acrescentados ao jogo – como acontece no caso de DLCs e expansões – mas sim nas microtransações, através das compras dentro dos games.

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É o estilo mais adotado pelos jogos free-to-play. O dinheiro vem todo da aquisição de itens cosméticos, boosters, bônus e coisas que variam de jogo a jogo. Enquanto isso, todo novo conteúdo e atualização são gratuitos, feitos para manter os jogadores jogando e aumentar as chances deles gastarem nas microtransações. A venda de itens cosméticos, aliás, é a principal fonte de renda da maioria dos jogos como serviço.

O que estamos vendo há um tempo, no entanto, é a popularização do formato em jogos que não são gratuitos. O jogador compra o game e recebe uma campanha, mas a intenção principal da produtora está no pós-jogo, quando se abrem as possibilidades para um game como serviço.

É interessante ressaltar que a popularização do termo “jogo como serviço” ou “GaaS” tem muito mais a ver justamente com esses jogos pagos que depois se comportam como free-to-play. Anteriormente qualquer jogador saberia o que esperar de um game a preço cheio ou um gratuito e não havia a necessidade de mais um termo para caracterizá-los.

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Com a popularização de jogos a preço cheio que têm a intenção de oferecer conteúdo por anos, surgiu a necessidade de se referir a eles de uma outra maneira, então GaaS entrou em uso – uma definição que acaba englobando os free-to-play também.

Um dos primeiros games a adotarem o formato de “pagar antes e pagar depois também” e fazerem imenso sucesso com isso foi Destiny, considerado um verdadeiro divisor de águas para mais produtoras perseguirem a mesma fórmula.

Uma guinada do destino

Por muitos anos as produtoras de jogos eram obrigadas a tomar uma decisão que consideravam inconveniente: fazer um jogo a preço cheio ou um free-to-play?

Jogos gratuitos para jogar, quando fazem sucesso, são uma mina de ouro para as empresas, oferecendo rendimentos constantes mês a mês por um investimento quase idêntico ao de se fazer um game que é comprado uma vez só. É evidente que esse investimento continua para criar novo conteúdo, mas não se compara ao valor gasto para fazer jogos novos.

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O problema maior para as produtoras sempre foi a falta de garantia nessas apostas. Se o seu free-to-play não fizer sucesso, não haverá ganhos constantes e você sai no prejuízo. Não só isso, o game pode até fazer sucesso, mas nada garante que o formato vai incentivar os jogadores a gastarem o suficiente depois e o jogo ainda acaba não gerando o lucro esperado.

É por isso que as grandes companhias passaram anos tentando descobrir a fórmula secreta para unir o gasto ao gasto – garantindo o retorno do investimento na venda dos jogos a preço cheio e depois impulsionando seus lucros mantendo os jogadores por anos no mesmo game. A Activision é considerada a primeira gigante a ter seu “momento eureka”.

O primeiro Destiny foi um título entre gerações, lançado em setembro de 2014 pela produtora e desenvolvido pela Bungie, que fez sua fama com a série Halo. O game já foi anunciado com imenso hype e mudaria para sempre a fórmula de jogos como serviço futuros.

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A premissa de Destiny já denunciava os planos de sua produtora: o game era pra ser uma mistura de um shooter tradicional como Halo (jogo de preço cheio) com um MMO como World of Warcraft (não completamente f2p, mas gratuito para começar).

Destiny não foi o sucesso esmagador que as companhias esperavam logo em seu lançamento, com jogadores reclamando especialmente de seu enredo. Mas mostrando justamente o potencial de ser um jogo como serviço, o game foi sendo corrigido com o tempo e aos poucos foi conquistando uma respeitável base de fãs.

Certamente Destiny não foi o primeiro game a tentar a fórmula, mas é considerado pela maioria dos jogadores e jornalistas – eu inclusive – o primeiro gigante a torná-la popular. Não à toa, muitas pessoas se referem aos GaaS até hoje como “estilo Destiny” ou “tal produtora está tentando fazer o Destiny dela”.

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Vale frisar ainda que até hoje o game é considerado um dos exemplos melhor sucedidos no mundo dos jogos como serviço. Sua continuação, Destiny 2, segue ganhando conteúdo até hoje com números incríveis de jogadores.

Perseguindo o hype

Os jogos como serviço com maior rendimento no mundo seguem pertencendo ao segmento dos free-to-play. É bastante complicado encontrar números públicos oficiais atualizados para os jogos, mas Fortnite, por exemplo, já rendia mais de US$ 5 bilhões em 2020. Enquanto isso, dados do Sensor Tower indicam que Honor of Kings deve ter acumulado mais de US$ 4,5 bilhões logo em 2019 e que Genshin Impact pode render até US$ 1 bilhão a cada seis meses com gastos dos jogadores dentro do game.

Não poderia deixar de citar o extremamente popular Warframe também. O game não chega perto dos rendimentos dos maiores do segmento, mas é constantemente lembrado por jogadores quando o assunto é sobre bons exemplos de jogos como serviço. Em 2019 a Digital Extremes, que faz o jogo, foi considerada a desenvolvedora mais valiosa sob sua empresa matriz, a chinesa Leyou. Além disso, o jogo teria arrecadado US$ 175 milhões no ano, um número que representou 80% do rendimento total da produtora no período.

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Indo para os jogos como serviço que não são gratuitos, temos alguns exemplos notáveis. Rainbow Six Siege, por exemplo, tem sido uma importante fonte de rendimentos para uma Ubisoft que tem enfrentado dificuldades de emplacar lançamentos recentes. Para o primeiro relatório financeiro deste ano, a companhia destacou o crescimento de 18% no rendimento do game e comemorou a marca de 85 milhões de jogadores.

Outro game notável foi Final Fantasy XIV. A Square Enix – que vai ter um trecho todo especial neste artigo – terminou seu ano fiscal em março de 2022 com um crescimento de 90% em seus lucros em relação ao período anterior, totalizando US$ 396 milhões. Infelizmente a produtora também não falou de números específicos para o game, mas ressaltou que FF XIV teve a “principal contribuição” no crescimento de seus lucros.

Seria interessante saber como anda a renda do game que praticamente definiu o conceito de GaaS pago, mas a Bungie não gosta de falar de seus ganhos com Destiny 2 em caráter oficial. Especulações são insanas, variando de US$ 100 aos US$ 500 milhões ao ano – mas a Sony investindo US$ 3,7 bilhões na aquisição da desenvolvedora já pode ser considerado um indicativo de que ela anda muito bem.

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Com todos esses números, não admira que basicamente toda produtora grande atualmente persegue essa “gansa dos ovos de ouro”.

A Microsoft comprou o Minecraft para garantir sua presença na onda. A Activision – que pode acabar sendo comprada pela dona do Xbox ou não – também foi atrás com COD: Warzone, fora sua própria aquisição da King para marcar presença nos celulares há algum tempo atrás. Ainda falando nessa produtora, também tem a Blizzard que faz escola nos GaaS, garantindo grandes nomes antigos como WoW e Diablo além de novidades também rentáveis como Overwatch.

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A EA conseguiu emplacar algum sucesso com Apex Legends, a Capcom faz Monster Hunter há tempos e alcançou uma explosão com o World. A Rockstar faz dinheiro até hoje com GTA Online e a Sony, como já foi mencionado, investiu na compra da Bungie, especialmente pensando em games como serviço.

A Square Enix, por sua vez, conseguiu imenso sucesso com FF XIV e tem tentado desesperadamente reproduzir a dose com outros títulos. E é isso que nos leva ao próximo segmento deste artigo: os fracassos.

Histórias de insucesso

Para cada game que estourou no segmento de GaaS, temos pelos menos uns cinco que não deram certo e floparam terrivelmente. A mesma Microsoft que recolhe tantos ganhos de Minecraft amargou Bleeding Edge enquanto a Activision Blizzard luta para manter Heroes of the Storm, um game que talvez você nem lembre que existe.

Anthem eu posso apostar que a maioria dos leitores se lembra, mas não pelos motivos que a EA gostaria. A Capcom já tentou fazer mais de um multiplayer falido de Resident Evil e sua próxima grande tentativa – Exoprimal – parece ter falhado em gerar algum hype considerável. 

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Falando em tentativas futuras, aparentemente Esquadrão Suicida foi adiado depois da péssima recepção de seu trailer de gameplay. Certamente o game não vai abandonar o formato GaaS com apenas um adiamento de alguns meses, mas é de se perguntar porque a Warner teria decidido oferecer mais tempo à Rocksteady depois de tantas críticas ao jogo.

Lawbreakers, Battleborn, Star Wars Battlefront 2, Paragon, Rumbleverse, Knockout City… A lista de jogos como serviço encerrados parece não ter fim, mas uma produtora em especial se destaca sozinha nos cancelamentos do gênero – a Square Enix. E pra quem ainda tem alguma dúvida, segue a lista:

  • Babylon’s Fall
  • Bravely Default: Brilliant Lights
  • Chocobo GP
  • The Adventure of Dai: A Hero’s Bonds
  • Final Fantasy VII: The First Soldier
  • Marvel’s Avengers
  • *Outriders – não foi encerrado ainda, mas sejam sinceros: quantos de vocês lembram que esse jogo existe?

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Esses são apenas alguns exemplos, sem entrar muito nos títulos para celular. A Square Enix não somente tem uma grande lista de GaaS encerrados, mas também é uma das produtoras que mais rapidamente desiste de suas tentativas, com Babylon’s Fall e First Soldier sendo exemplos notáveis disso.

A dona do Final Fantasy XIV é um exemplo muito específico, no entanto. Além de “atirar pra todo lado”, a Square Enix tem uma fama conhecida de estabelecer metas irreais para suas produções e depois chamar jogos de “fracassos”, mesmo quando eles são bem sucedidos. O que essa grande empresa japonesa tem em comum com todas as outras é a política da tentativa e erro.

A Square Enix pode levar a cultura de “ver o que cola” a um extremo exagerado, mas podemos observar que todas as grandes produtoras estão muito dispostas a fazer tentativas variadas no segmento de jogos como serviço – muito mais dispostas a correr esses riscos do que investir em novas IPs de games single player, por exemplo. Por que será?

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Por que a tendência continua?

Vamos retomar o caso do Esquadrão Suicida. Nunca podemos duvidar da capacidade das produtoras de tomarem decisões equivocadas, mas é de se imaginar que a Warner sabia que boa parte do público não ficaria feliz com o formato adotado pelo novo game da Rocksteady.

Incumbir o estúdio que se consagrou com jogos altamente imersivos, 100% focados na história e com ênfase total em pancadaria e furtividade de fazer um looter shooter à la Fortnite certamente não cairia bem entre os fãs de Batman Arkham.

Talvez a retaliação dos jogadores foi maior do que a Warner esperava, mas posso afirmar com certeza que a produtora já sabia que irritaria muitos jogadores e mesmo assim decidiu que deveria apostar no formato.

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Olhando para este caso específico e pensando na tendência atual das produtoras de tentarem de tudo e ver o que dá certo, a conclusão que acredito ser inevitável é uma só: jogos como serviço devem gerar uma margem profana de lucros.

Apenas isso explicaria tudo. Se um único jogo novo fazendo o mesmo sucesso que Final Fantasy XIV compensar seis tentativas fracassadas, a Square Enix não vai enxergar motivos para repensar suas políticas. Se Esquadrão Suicida conseguir fisgar alguns gastadores de peso, a Warner não vai se importar com as críticas. Parece-me que as produtoras não ligam de jogar dinheiro sem parar nessa fornalha, porque se conseguirem ao menos um produto bem sucedido terá valido a pena.

Quando visitei o tema dos jogos como serviço no final do ano passado, tentei concluir de maneira positiva, tentando ver o famoso copo meio cheio. Agora ficou mais difícil. Em primeiro lugar, nunca deixará de existir o problema desses jogos predarem pessoas que lutam com tendências ao vício – algo que citei no artigo passado e que tem ficado cada vez mais difícil de perdoar. 

O segundo ponto é que encerrei o artigo anterior torcendo por um equilíbrio. O uso dos tão importantes ganhos nos jogos como serviço para a criação de experiências mais pensadas para a qualidade do jogo e divertimento do jogador do que geração de renda. E não é isso que estamos vendo.

Existem, obviamente, aqueles jogos como serviço que são amplamente elogiados e que parecem encontrar um equilíbrio sustentável entre o conteúdo oferecido e o clamor constante por mais dinheiro. Não é disso que estou falando.

Minha crítica vai para essa política de gastar milhares de dólares em diversos jogos iguais buscando ver qual deles que vai dar certo. O dinheiro não está sendo reinvestido em diversificar as experiências, mas apenas nas mesmas, num ciclo para tentar emplacar outro e mais outro sucesso no segmento GaaS. E temos ainda o streaming de jogos como mais um incentivador para a criação de games do tipo…

Se continuar assim, não é impossível vermos o dia em que não existirão mais jogos AAA sem microtransações.

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