A Capcom voltou? Os erros e acertos da queridinha dos remakes
Falar da história da Capcom é falar da história do videogame
Tente organizar uma lista mental das produtoras mais influentes da história do videogame. Se você colocou mais de cinco nomes e não incluiu a Capcom, há algo de errado na sua lista.
A Capsule Computer faz jogos há mais de 40 anos e é diretamente responsável por criar ou redefinir gêneros inteiros de jogos, com títulos lançados até hoje. Seja bombando com remakes ou continuações, a Capcom entalhou seu nome no mundo dos games de um jeito que poucas companhias fazem.
Mas nem sempre a dona do Resident Evil soube surfar nas ondas do sucesso. A empresa já passou por tempos sombrios em que não conseguia acertar nunca com seus lançamentos. O que fez a companhia cair do cavalo de seus primeiros anos de glória? E como ela está retomando uma posição mais respeitável nos dias atuais? Vamos buscar as respostas no artigo da vez!
A Capcom e os games
A Capcom como a conhecemos foi oficializada em 1983, em Osaka, depois de empresas anteriores se juntarem para direcionar seus esforços na criação de jogos de fliperama. Neste mesmo ano, a produtora lançaria seu primeiríssimo título, o Little League, um jogo de gabinete operado por moedas. Foi no ano seguinte, em 1984, que a Capcom lançou seu primeiro videogame propriamente dito nos arcades, chamado Vulgus.
A própria empresa ressalta em seu site que 1983 foi justamente o ano de estreia do Famicom – o NES – mas que a companhia não teve interesse em criar jogos para o console doméstico da Nintendo num primeiro momento. “Era difícil desenvolver conteúdo de alta qualidade em nível de arcade (para o NES)”, diz sua página oficial. Em vez disso, a Capcom focava no desenvolvimento de sua placa proprietária que seria icônica ao longo de anos nos fliperamas, a CP System. O pessoal que mexe com emuladores deve ser familiar à sigla CPS.
Parece que investir em jogos para fliperama com foco na qualidade garantiu um sucesso rápido para a Capcom. Logo em 1985 a empresa estabeleceu uma divisão nos Estados Unidos, na Califórnia. Este também foi o ano em que a produtora decidiu expandir seus horizontes de lançamentos, levando o popular 1942 para o NES. Apenas dois anos depois, em 1987, a companhia lançaria Rockman no console da Nintendo, mais conhecido por aqui como o inconfundível Mega Man.
Existe uma história um tanto curiosa sobre o final dos anos 80 para a Capcom. Embora não seja oficialmente confirmado pela empresa, ex-funcionários relatam que um jogo erótico salvou a produtora da falência no fim da década. O conhecido artista Akira Yasuda, o “Akiman”, relatou em seu Twitter que Mahjong Gakuen vendeu mais do que Ghouls’n Ghosts em seu lançamento – os dois jogos fizeram sua estreia em 1988.
Akiman afirma que Yoshiki Okamoto, um dos produtores da Capcom na época, trabalhou “secretamente” no jogo, que é uma espécie de strip Mahjong. O ex-produtor confirma a história, e inclusive já falou do assunto em seu canal no YouTube. O game foi lançado sem levar o nome da Capcom no entanto, distribuído através de uma produtora terceirizada, a Yuga.
Mas no início dos anos 90 a Capcom não precisaria mais se preocupar com jogos que não se orgulhava em produzir. Com a chegada do Super Nintendo, a empresa entrou de cabeça no segmento de jogos domésticos, trazendo sua expertise dos arcades para a casa das pessoas com muito sucesso. A época é melhor simbolizada pelo hit que foi Street Fighter 2, que resultou em ganhos para a empresa de diferentes maneiras.
É importante ressaltar essas “diferentes maneiras” porque em 1994 a Capcom iniciou o que ela chama de “estratégia de usos múltiplos de um único conteúdo”. Como o nome sugere, é a prática da empresa em tentar extrair mais produtos e merchandising em cima de cada um de seus jogos. No caso de Street Fighter 2, por exemplo, a companhia destaca a produção da excelente animação de longa metragem e do não tão excelente filme live action que saíram nos anos 90.
O filme estrelado pelo Van Damme, aliás, por mais que tenha sido rechaçado pela crítica, foi um sucesso de bilheteria – que é a parte mais importante para qualquer produtora.
A partir daqui já entramos na parte da história da Capcom que muitos dos jogadores conhecem ou se lembram. Então, antes de mergulharmos nos piores momentos da produtora, vamos tirar um trecho para falar de alguns de seus jogos e séries mais icônicos.
Os games e a Capcom
Não dá pra falar de uma produtora como a Capcom sem dedicar um espaço para comentar sobre seus games mais importantes e influentes. Apesar de não ser a empresa que mais vende jogos no mundo, a Capcom tem alguns títulos que simplesmente redefiniram todo o gênero em que foram lançados, como Street Fighter ou Resident Evil.
Segundo dados de dezembro de 2022 da própria produtora, essas são as suas séries de jogos que mais venderam na história – acompanhados do número de unidades distribuídas por franquia:
- Resident Evil (1996): 135 milhões
- Monster Hunter (2004): 90 milhões
- Street Fighter (1987): 49 milhões
- Mega Man (1987): 38 milhões
- Devil May Cry (2001): 28 milhões
- Dead Rising (2006): 15 milhões
- Marvel vs. Capcom (1998): 10 milhões
- Ace Attorney (2001): 9,8 milhões
- Onimusha (2001): 8,5 milhões
- Dragon’s Dogma (2012): 7,2 milhões
Alguns exemplos notáveis merecem mais informações, então vamos seguir pela ordem cronológica.
Street Fighter teve sua estreia em 1987, num jogo desconhecido por muitos. Até entre os fãs da franquia existem vários jogadores que nunca experimentaram o primeiro título. Você podia jogar apenas com o Ryu e o Sagat era o último chefe do game. O Ken aparecia como personagem alternativo para jogar no versus com um amigo.
Como todos sabem, foi Street Fighter 2, lançado em 1991, que não apenas transformou a franquia no que hoje é, mas de muitas maneiras definiu todo o gênero de jogos de luta em 2D – iniciando um boom do gênero que dominou os anos 90. Um fato curioso é que uma mecânica completamente central para o título e todo game de luta que veio depois dele começou como um bug que os criadores escolheram não tirar: os combos.
Mega Man veio no mesmo ano, alguns meses depois. Em dezembro, aquele que se tornaria o mascote da Capcom fazia sua estreia no Nintendinho, onde o jogo também trouxe um novo padrão para o gênero de plataforma.
O robozinho azul chamava a atenção pela precisão de seus saltos, qualidade e variedade na construção de cenários e, claro, seu gameplay não-linear. O que define Mega Man em sua essência é deixar os jogadores completarem os níveis na ordem que quiserem, conseguindo as armas especiais de um chefe para usar como a fraqueza do outro.
Um fato interessante aqui, pra quem não sabe, é que o nome original do Mega Man, no Japão, é Rockman – justamente por causa da mecânica de “pedra (rock), papel ou tesoura” das armas dos chefes e suas fraquezas.
Resident Evil chega em 1996 arrebentando a boca do balão. O jogo não era apenas um importantíssimo título para a Capcom em número de vendas, mas para o próprio PlayStation, dando início a uma produtiva parceria entre a Sony e a produtora.
Não podemos chamar Resident Evil de o “primeiríssimo” survival horror, mas certamente foi o game que popularizou o estilo e seu nome. Temos um bom tanto de títulos de terror e suspense que vieram antes, principalmente no PC, mas dá pra ver facilmente a diferença dos lançamentos antes e depois de Resident Evil.
E claro que a Capcom não aproveitou pouco sua franquia mais vendida. É a série com o maior número de lançamentos, DLCs e produtos paralelos, como filmes, animações e séries. A qualidade pode variar, mas os ganhos continuam.
Devil May Cry chega em 2001, e foi um dos jogos possibilitados pela existência de Resident Evil, por incrível que pareça. O jogo começou seu desenvolvimento como o primeiro Resident Evil para PlayStation 2 e seu diretor, Hideki Kamiya, queria aproveitar o momento para mudar completamente o direcionamento da série.
A Capcom não gostou da quantidade de mudanças, mas via potencial no jogo sendo feito, então surgia uma nova série que definiria um novo padrão de qualidade para os hack’n’slash. Curiosamente, depois de deixar a produtora, Kamiya criou uma nova franquia que é considerada a principal concorrente para DmC – Bayonetta.
Monster Hunter é o último destaque que gostaria de fazer aqui. A série surgiu com uma premissa extremamente original no PlayStation 2 em 2004. Talvez original até demais, porque ao longo de anos a franquia ficou limitada a um nicho bem determinado de jogadores.
Apenas o primeiro game teve um lançamento internacional, para depois a Capcom se focar mais apenas no Japão e na Coreia. O game sempre manteve uma boa dose de sucesso em suas regiões, com um crescimento constante de seu público. É por isso que, em 2018, a produtora decidiu que estava na hora de apostar novamente numa distribuição maior e lançou Monster Hunter World, no PS4, Xbox One e depois no PC. Não é à toa que o jogo ganhou este nome.
A aposta foi um sucesso massivo e Monster Hunter World é disparadamente o mais vendido da franquia, inclusive incentivando a Capcom a trazer títulos anteriores e seguintes para o mercado internacional.
O lado Umbrella da Capcom
Nem tudo são flores na história da Capcom, como seria de se esperar. Tal qual os BOWs mais terríveis que encontramos em Resident Evil, a produtora já passou por uma boa dose de transformações, nem todas bem recebidas pelo público.
Antes de falar dessas mudanças, no entanto, vamos relembrar algumas das posturas da Capcom que podem parecer recentes, mas que sempre existiram. Principalmente o amor da companhia por fazer milhares de versões de um mesmo jogo.
Isso vem desde antigamente, quando não tinha como mudar o jogo através de patches ou vender conteúdo adicional por DLCs. A Capcom simplesmente fazia edições completamente novas dos games, às vezes com mudanças mínimas. O hit Street Fighter 2, por exemplo, teve sua primeira edição com apenas oito lutadores nos consoles, para depois lançar uma nova versão liberando os “chefes” para jogar – Vega, Sagat, Balrog e M. Bison. Isso bem antes do lançamento da New Challengers, que incluiria personagens realmente inéditos, como a Cammy e o Fei Long.
A popularidade do DLC para acrescentar conteúdo aos jogos depois do lançamento ajudou a mitigar esse problema de vender o mesmo jogo tantas vezes, mas a Capcom ainda encontraria maneiras de irritar seus jogadores.
Um dos exemplos mais infames foi com Asura’s Wrath, em que a produtora teve a coragem de simplesmente vender o final verdadeiro do jogo separadamente, como DLC.
Por sorte essa prática foi criticada o suficiente para não se tornar comum, mas uma outra virou algo quase padrão entre outras produtoras também – a venda de mídias físicas com conteúdo extra “travado”.
O exemplo mais notável disso foi em 2012, com Street Fighter x Tekken. O game tinha conteúdo de DLC já instalado no disco, mas que só poderia ser acessado – “destravado” – pagando. A Capcom foi amplamente criticada na época, mas defendeu o método de distribuição, que acabou se tornando comum para outras produtoras também.
Outro momento bem complicado na história da empresa veio de sua tentativa de mirar no público ocidental.
Em meados de 2009, Keiji Inafune – ninguém menos que o criador do Mega Man – liderava o time de desenvolvimento da Capcom e decidiu que a empresa precisava se voltar mais para o público de fora do Japão.
A decisão não veio do nada, é claro. Resident Evil está no topo das vendas da Capcom há anos, e sabemos que essa é uma série de jogos que sempre foi voltada para os jogadores de fora do Japão. Mas além de ter esse ótimo argumento, Inafune também estava insatisfeito com o estado do desenvolvimento de jogos em sua terra natal.
“Não é um sistema em que você não é pago no próximo mês se o jogo não vender bem (no Japão). Até se não vender, você ainda recebe seu salário no próximo mês”, comentou Inafune em uma entrevista. “Como as pessoas estão acostumadas com esse sistema, o sentimento de querer fazer um jogo melhor e melhor enfraqueceu. É tipo ‘estou apenas fazendo o que me disseram pra fazer’.”
O pai do Mega Man deixou a Capcom logo no ano seguinte, em 2010. Todas as suas críticas contra a falta de inovação e vontade de fazer um bom jogo resultaram em Mighty No.9 alguns anos depois.
Mas, voltando à Capcom, o plano de se voltar para fora do Japão continuou por anos, com resultados variados. Alguns jogos que saíram da iniciativa foram muito bem recebidos, como Dead Rising e Lost Planet – apesar do sucesso não ter sido mantido ao longo de suas continuações.
Muitos jogadores, no entanto, se ressentem desse período por causa das bolas fora da empresa. DmC, da Ninja Theory, por exemplo, foi considerado uma facada nas costas para muitos dos fãs de Devil May Cry.
Apesar do jogo mudar demais o universo uma vez criado por Kamiya, ele ainda conta com muitos defensores. O mesmo acontece com Resident Evil 6, outro título que se afastou bastante de suas raízes para abraçar um estilo completamente novo que desagradou os fãs.
Além desses títulos controversos, há os jogos que são simplesmente indefensáveis no período, como o reboot de Bionic Commando. Foi lançado em 2009 mesmo, com o objetivo de ser um dos grandes destaques na nova iniciativa da Capcom de se voltar para o ocidente, e o tiro saiu completamente pela culatra.
Enquanto isso, os fãs de jogos menores da produtora, principalmente aqueles bastante diferenciados e originais, se sentiam largados para trás. Jogadores de grandes títulos fora da casinha como Viewtiful Joe, Okami e God Hand tiveram que assistir impotentes ao fechamento do Clover Studio em 2006.
A Capcom voltou?
Essa é a grande questão. Uma sucessão de lançamentos da produtora muito bem-sucedidos e bem recebidos pelo público fez surgir esse grito de guerra na internet, quase como um meme: “a Capcom voltou!”
Será que voltou mesmo? Quem defende que sim aponta para os ótimos jogos lançados em sequência pela produtora, começando pelo excelente Monster Hunter World, passando pelo retorno de Resident Evil ao terror, entregando coletâneas caprichadas do Mega Man e culminando no aguardadíssimo remake de Resident Evil 4, que tem sido amado pelo público.
Os céticos ressaltam práticas comerciais questionáveis que continuam acontecendo, anúncio de jogos que nunca chegam a ver a luz do dia (Pragmata, cadê você?) e tentativas estranhas como Exoprimal no lugar de Dino Crisis. Também podemos mencionar o flop de Marvel vs. Capcom Infinite e a política desastrosa de lançamento de Street Fighter V.
O que é interessante entender é que a Capcom “voltar” não significa virar uma produtora sem defeitos. Como ressaltado neste artigo, a produtora sempre teve algumas práticas predatórias de mercado, mesmo no seu auge. Voltar à sua velha forma seria pelo menos entregar jogos de qualidade enquanto faz isso.
Não temos uma mudança de política oficialmente divulgada pela empresa para essa guinada dos últimos anos, mas é visível a transformação no estilo do que tem sido produzido de uns anos pra cá.
Como não há uma declaração oficial sobre o assunto, nos cabe apenas especular sobre o que aconteceu para estarmos vendo essa mudança. Em fóruns e redes sociais, o argumento mais comum é que a Capcom basicamente resolveu ouvir seus fãs.
Muitos pediam por uma presença maior no ocidente de Monster Hunter e tivemos o World. Fãs frustrados de Resident Evil queriam voltar ao terror e tivemos o lançamento do 7 e dos remakes dos games mais queridos da franquia. Street Fighter V teve um lançamento um tanto quanto desastroso, mas a produtora foi consertando com base no feedback do público e o sexto game da franquia parece que vai chegar bem mais redondinho.
Os amantes de Mega Man – eu incluso – ainda reclamam bastante, mas não podemos negar que a Capcom parece pelo menos estar “tentando”. Além das várias coletâneas, tivemos o Mega Man 11. Foi um ótimo jogo do mascote, mas infelizmente um tanto ignorado. Talvez por isso não veremos um novo X tão cedo, mas realmente parece que a Capcom quer agradar esse público também.
É normal criar um relacionamento de afeto com uma produtora, principalmente quando muitos de seus lançamentos fizeram parte de nossa infância e comandam tanta nostalgia. Eu com certeza faço parte desse grupo quando falamos de Capcom. Mas não podemos perder de perspectiva que uma empresa é uma empresa e sempre vai mirar no lucro. O que dá pra exigir são jogos de qualidade pelo caminho, e isso a Capcom tem feito. Só nos resta torcer para continuar.