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Todo jogo deveria ser obrigado a ter um modo easy?

Uma reflexão sobre jogar no modo fácil e os jeitos de se expressar

por João Gabriel Nogueira
Todo jogo deveria ser obrigado a ter um modo easy?

Depois de passar o ano inteiro como favorito, Elden Ring levou a almejada conquista de Game of the Year (GOTY) no The Game Awards de 2022. A homenagem marcou a segunda vez que um título da FromSoftware consegue o aclamado prêmio, com Sekiro: Shadows Die Twice levando o título em 2019.

São duas marcas de “melhor jogo do ano” para dois títulos considerados ostensivamente difíceis pela maioria dos jogadores. Somando mais games da própria FromSoftware e outros tantos de produtoras diferentes, estamos vendo uma “renascença” dos jogos difíceis de uns tempos pra cá. São os chamados “masocore”, uma brincadeira que insinua que são jogos para “masoquistas”.

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Essa popularidade atrai todo tipo de jogador, inclusive aqueles que gostariam que os games fossem menos difíceis para poderem apreciar o título do momento também. Mas todo game deveria ter, obrigatoriamente, um “modo easy”? Esse é um debate interessante, que passa por fatos e opiniões, então vamos a ele.

O que é o modo easy?

Provavelmente todo jogador sabe o que é o famoso modo easy de um game, mas já que vamos falar tanto dele é interessante desenvolver um pouco esse conceito antes de tudo.

Easy significa “fácil” e, obviamente, deixa o jogo mais fácil para quem não quiser enfrentar um grande desafio. É o oposto do modo hard, difícil, que dificulta a jogabilidade do título.

Existem diferentes configurações de balanceamento que podem ser feitas para tornar um jogo mais fácil. Soluções mais simples mexem apenas nos números por trás da engine, deixando inimigos mais fracos e o personagem do jogador mais forte, o que naturalmente facilita o gameplay. Em alguns casos o game vai além, mexendo também na IA e no comportamento dos monstros e às vezes dando mais habilidades ao protagonista. Alguns games vão além e modificam até aspectos da fase, tirando armadilhas ou coisas do tipo.

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É uma simples configuração que somente tem a ver com quem vai jogar, para sua experiência pessoal, mas é impressionante o impacto psicológico que isso tem em tantos jogadores.

Esse impacto torna-se perceptível nas muitas maneiras alternativas que os desenvolvedores escolhem para chamar o modo easy em seus jogos. Enquanto títulos como Duke Nukem e Wolfenstein gostam de tirar sarro e provocar quem opta por jogar no fácil, atualmente vemos uma tendência em tentar dar um nome mais receptivo para o easy – chamar de “modo história” tem ficado comum, por exemplo.

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Isso tem muito a ver com a cultura competitiva que permeia o mundo dos games, e o costume injustificado de alguns jogadores que se consideram no direito de definir o que seria ou não um “gamer de verdade”. A jogatina é mais social do que nunca atualmente, e muitos jogadores se preocupam com sua “imagem” perante a outros, inclusive em jogos single-player.

E é isso que torna um pouco mais complexa a discussão quando aparecem pedidos para que se coloque um modo easy num jogo que não tem.

Os tempos e suas culturas

É sempre importante observar como o cenário de games da atualidade é totalmente diferente de antigamente, não apenas no avanço natural das tecnologias, mas na própria lógica por trás do desenvolvimento dos jogos.

Um dos primeiros grandes “booms” na popularidade do videogame veio através dos arcades – os conhecidos fliperamas onde a galera se reunia para jogar e, muitas vezes, competir. Em nosso artigo sobre as mídias físicas comentamos como grande parte do sucesso do Atari veio de sua capacidade de transportar os títulos que dominavam os fliperamas para as casas dos jogadores.

A cultura da época permitia que os games oferecessem um grande desafio aos jogadores, algo que as produtoras faziam com muito gosto pois ajudava os jogos a comerem muitas fichas. Não existia uma enorme preocupação em não frustrar um jogador, pois se você desistisse o próximo da fila estaria ali para gastar suas fichas.

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Os jogadores atraídos por esse estilo de game eram justamente aqueles dispostos a superar o desafio, os que não desistiriam até poder se gabar para todo mundo no boteco que consegue zerar Metal Slug com somente uma ficha. E muito dessa cultura foi transportada para os consoles domésticos junto com seus jogos, mesmo com a questão das fichas deixando de existir na jogatina em casa.

A presença do videogame em casa, no entanto, foi resultando em novos estilos de jogos e em jeitos diferentes de jogar. Podendo aproveitar o game no conforto de seu lar, muitos jogadores passaram a valorizar mais a história e a imersão, e foram aparecendo mais pessoas que até querem se desafiar, mas não ao ponto de ficarem frustradas por não conseguir passar uma parte.

O público que não busca desafios quase insuperáveis foi crescendo até o ponto em que aconteceu uma inversão. É difícil dizer um momento exato em que a lógica de desenvolvimento de jogos passou de um lado para o outro, mas atualmente qualquer jogador vai concordar que a maioria dos games não é feita com a nítida tentativa de ser o mais difícil possível.

Isso não quer dizer que os jogos desafiadores acabaram, obviamente. Como dito na introdução do artigo, eles não só existem como continuam populares e os melhores são até premiados. Mas é seguro dizer que games como Sekiro, Cuphead e até Sifu são mais voltados para um determinado nicho na atualidade.

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É essa mudança que faz muitos jogadores “oldschool” e amantes do desafio muitas vezes pensarem que “não se faz mais jogos difíceis”. Antigamente era só comprar qualquer jogo que ele certamente seria desafiador, enquanto agora não é mais o caso. Com a quantidade de jogos que sai mês após mês é simples encontrar títulos que ainda oferecem grande dificuldade, mas por terem deixado de ser a regra, há jogadores que se sentem frustrados. E é por isso que alguns deles se irritam quando querem mexer no nicho específico dos games difíceis.

Uma questão polêmica?

OK, depois de tanto contexto não dá pra adiar mais: vamos falar das “polêmicas” envolvendo o assunto. O enorme sucesso de jogos como Sekiro e Cuphead*, por exemplo, fez surgir artigos de variados criadores de conteúdo clamando para que fosse colocado um modo easy nesses games.

*Vale aqui um pequeno adendo: Cuphead até tem um modo mais fácil, mas ele corta parte do final do jogo, algo que também foi criticado por quem defende um modo easy em todos os jogos.

Possivelmente o grande precursor da discussão, pelo menos o que mais ficou em evidência, foi o artigo “Sekiro: Shadows Die Twice needs to respect its players and add an easy mode”, escrito por Dave Thier para a Forbes. Em tradução livre, o título pode ser lido como “Sekiro precisa respeitar seus jogadores e adicionar um modo fácil”.

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Vale a pena a leitura, principalmente se você pretende criticar o trabalho. Em termos gerais, Thier elogia bastante Sekiro, principalmente a capacidade de construção de mundo do game, e lamenta o grande número de jogadores que nunca terão a chance de ver nada disso pela extrema dificuldade do título.

“Talvez eles tenham um tempo limitado de jogo e não querem gastá-lo enfrentando a Lady Butterfly 100 vezes seguidas. Talvez eles apenas não sejam tão bons em acertar o timing dos parries, talvez eles fiquem frustrados e não queiram se sentir frustrados no momento. Talvez eles tenham algum problema físico que deixa esse tipo de precisão um pouco difícil demais para conseguir. Um modo fácil permitiria uma magnitude de mais jogadores verem o que a From (Software) construiu, mas essas experiências ainda permanecem bloqueadas para esses milhões de pessoas por razões que não consigo entender.”

O autor menciona a defesa que a falta de um modo fácil seria em respeito aos jogadores, uma maneira da desenvolvedora mostrar que acredita que todos conseguem vencer os desafios do jogo. O título do artigo, então, é um contraponto a esse argumento – na visão de Thier, o respeito real aos jogadores seria confiar neles para escolher como querem ter suas experiências.

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“Isso mostra uma quase assombrosa falta de respeito com os jogadores, com a ideia de que não se pode confiar neles com a própria experiência de jogo, de que até aqueles que querem um jogo desafiador seriam de algum modo seduzidos pelo canto da sereia de dificuldades mais baixas e destruir suas próprias experiências porque são muito impacientes ou muito imaturos para saber o que eles realmente querem.”

Você não precisa curtir nenhum soulslike para saber como os jogos da FromSoftware têm uma base dedicada e até fanática de jogadores. São games de altíssimo nível de qualidade que exigem muito de seus players, então muitos naturalmente ficam bem protetivos com seus jogos.

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Já existe um forte movimento contra qualquer mudança na dificuldade desses games, então esse tipo de artigo enfrentaria críticas naturalmente. Mas insinuar que a FromSoftware estaria “desrespeitando” alguém realmente fez muitos de seus fãs levarem as coisas pro lado pessoal – especialmente quem prefere só ler os títulos dos textos.

O texto de Thier vai completar 4 anos agora em 2023, mas as coisas não mudaram muito desde sua publicação. A FromSoftware continua não colocando modo easy em seus jogos e muitos de seus fãs vão perder as estribeiras na defesa dessa política se você insistir muito no assunto. Mas o infame artigo passa por cima de algo que merece um trecho em especial por aqui: a tal da acessibilidade.

Falando de acessibilidade

O assunto acessibilidade tem ficado em alta nos últimos anos e certamente é um que aparece quando falamos sobre o modo fácil dos jogos – afinal, diminuir os desafios de um game pode ser um atalho simples para torná-lo acessível a um número maior de jogadores, o que inclui aqueles com deficiência.

É importante, no entanto, fazer uma distinção entre jogo fácil e jogo acessível. Existe, sim, uma intersecção entre as palavras, mas elas não significam exatamente a mesma coisa. Há uma diversidade de configurações de acessibilidade que um jogo pode oferecer sem que ele se torne, necessariamente, mais fácil.

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O exemplo mais básico possível é o mapeamento de controles. Uma configuração simples que diversos games oferecem e a maioria dos jogadores não vai chamar de “colocar no easy” – mas essa é uma das configurações mais importantes para tornar um game mais acessível. Existem milhares de pessoas com deficiência que se acostumaram a fazer mudanças simples nos controles dos jogos que já lhes permite jogar.

A ideia das configurações de acessibilidade é tentar remover um pouco da camada extra de dificuldade que uma pessoa com deficiência pode encontrar num game, para que este jogador possa ter uma experiência mais próxima de todos os demais – e isso não importa se estamos falando de um jogo mainstream ou um “masocore” da vida.

Aqui cabe mencionar o jogador conhecido como Esquerdinha, que tem esse apelido porque só pode usar a mão esquerda para jogar – e faz isso MUITO bem. Ele é completamente viciado em jogos da FromSoftware e, apenas com uma mão, já destrinchou esses títulos mais que muitos de seus fãs.

Usando a própria habilidade e muita perseverança ele pegou a manha de dominar o controle do PlayStation com apenas uma mão, mas ele não defende que esse nível de dedicação deveria ser o padrão. Em uma conversa comigo, ele contou que gosta de se desafiar o máximo possível e ver se consegue vencer os games sem mudanças nas opções, mas ele é completamente a favor que os jogos introduzam configurações de acessibilidade para que mais pessoas possam ter uma experiência mais parecida com o que foi pretendido pelos seus desenvolvedores.

A parte opinativa

Vamos concluir com um pouco de opinião para amarrar o texto. Afinal, a resposta para “todo jogo deve ter um modo easy?”, no fim das contas, vai da opinião de cada um.

Acredito que o debate envolvendo a presença ou não de um modo mais fácil nos games vira polêmica muito mais por uma questão sobre a maneira que as pessoas se expressam do que as mecânicas dos jogos em si.

Do mesmo jeito que os desenvolvedores têm mudado a forma de chamar o modo fácil de seus jogos para não afastar jogadores, quem joga às vezes também poderia tomar cuidado com a maneira de falar para não transformar um debate em briga.

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Exemplo: uma pessoa dizendo “Sekiro parece muito legal! Pena que não consigo pegar as manhas do parry… Gostaria muito de um modo easy pra curtir mais o game” dificilmente causaria tanto alvoroço quanto alguém dizendo “é uma falta de respeito Sekiro não ter um modo easy!”.

Seguindo a mesma lógica, é desnecessária a maneira que alguns jogadores ficam exageradamente superprotetores de seus games preferidos, especialmente quando falamos dos soulslike da FromSoftware. Se você é fã de verdade na desenvolvedora deve confiar nela o suficiente para acreditar que eles podem introduzir um modo easy em seus jogos – se assim o quiserem – sem comprometer a experiência de quem gosta dos modos mais difíceis. Saber que vai ter alguém por aí jogando no easy em nada altera a sua experiência pessoal com o game e xingar estranhos na internet por causa da maneira que eles jogam em suas casas é um completo absurdo.

Pessoalmente, busco sempre respeitar e entender a visão dos criadores por trás de um game. A ausência de um modo easy pode ser falta de tempo, de vontade ou eles simplesmente não conseguirem imaginar uma visão diferente para a experiência de seus jogos – ou até uma mistura dessas três coisas. Mas isso não quer dizer que os jogadores não possam se manifestar a respeito do assunto.

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Saber que existe um grande número de pessoas interessadas nos jogos, mas que preferiam jogar num modo mais fácil, pode servir de incentivo para os desenvolvedores superarem suas limitações e encontrarem uma solução para entregar o que tem sido pedido sem sacrificar a visão que têm para seus jogos – repito, se assim o desejarem.

Existe uma grande diferença entre fazer pedidos e fazer exigências, bem como existem diferenças entre defender seu jogo preferido e atacar os outros. Infelizmente, em discussões na internet, pode ser mais difícil entender isso do que zerar Sekiro.