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Conheça o universo da localização de videogames

A localização de jogos vai muito além de uma simples tradução

por Bruna Mattos
Conheça o universo da localização de videogames

Ainda que o inglês seja considerado uma língua universal e boa parte do conteúdo de entretenimento seja produzido nesse idioma, games estão se tornando experiências cada vez mais imersivas e interativas. Considerando que os videogames se tornaram a indústria mais lucrativa do entretenimento, um jogador pode estar em qualquer lugar do planeta, falar diferentes idiomas e estar inserido nas mais diversas culturas. A localização de videogames é uma forma de ampliar essa imersão, criando uma experiência equivalente e autêntica para todos os jogadores, do ponto de vista linguístico e cultural, para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.

Mas localização é o mesmo que tradução?

A tradução é uma forma de interpretar o significado de um texto em uma outra língua, e reproduzir um novo texto, com um sentido equivalente. A localização tem um nível de elaboração um pouco maior. Ela engloba não somente o significado do texto original, mas se adapta, incorporando referências culturais de um determinado mercado ou país. A ideia é que a localização produza uma obra que pareça o máximo possível com algo criado no país ou região alvo.

Uma tradução pura, ou literal, pode comprometer a imersão do jogador no universo do game. O site Legends of Localization tem o “Hall da Fama” das piores traduções dos videogames. O “campeão” é Zero Wing, o game da década de 90 do Mega Drive que virou meme muitos anos depois com a frase “All your base are belong to us”, uma versão em inglês bem ruim da frase original em japonês, que dizia “todas as suas bases estão sob nosso controle”.

zero wing all your base are belong to us

A lista o Legends of Localization traz outras pérolas, a maioria na tradução japonês – inglês, de jogos como Ghost ‘n Goblins, Final Fantasy VII e Samurai Shodown. Grande parte dos exemplos são de jogos mais antigos, mas demonstram como um momento de um game, que pode representar desde uma ameaça a um final feliz, pode se tornar uma piada e alterar completamente a experiência do jogador.

Como é o processo?

processo de localização de videogames

Tudo começa com a tradução. Uma única pessoa ou um grupo de tradutores passa textos, menus, diálogos, para outro idioma. Essa primeira etapa já pode incluir a incorporação de elementos culturais, gírias, contrações de palavras, decisão sobre adoção de uma norma mais culta ou não para determinado personagem, etc.

O passo seguinte é a edição ou revisão, que envolve a correção de eventuais erros textuais ou adaptação do estilo. A revisão também inclui um aspecto importante, que é a consistência da tradução: esse processo garante que um determinado termo seja sempre traduzido da mesma forma, para que não haja confusão ou dificuldade de interpretação por quem está interagindo com o texto.

Depois, vem a fase de integração, que inclui adicionar o texto traduzido ou o áudio dublado ao jogo em si. Isso normalmente fica na mão de programadores e de editores, que substituem o texto original e faixas de áudio pelo conteúdo localizado, além de garantir que tudo esteja sendo exibido e sincronizado corretamente.

A última parte do processo pode incluir o LQA, ou “Linguistic Quality Assurance”, que é um processo de avaliação da precisão da tradução e sua qualidade. Essa fase pode incluir desde uma revisão externa do texto localizado, até um grupo de testers que jogam o game com a localização já implementada, fazendo uma avaliação e sugerindo possíveis alterações.

A localização também pode incluir a adaptação regional, que muitas vezes envolve censura. Não são permitidos, por exemplo, imagens de símbolos religiosos em jogos publicados na China. Vários elementos de violência extrema e sangue são atenuados em jogos lançados no Japão. Na Alemanha, qualquer coisa que faça alusão ao nazismo deve ser alterada, o que faz com que jogos como Wolfenstein tenham algumas mudanças visuais importantes:

Dublagem é só uma parte

O Brasil tem uma tradição muito forte em dublagem. Temos dubladores e diretores incríveis, que são os responsáveis não só por “encaixar” determinada fala em uma cena, mas transmitir o sentimento daquele momento.  No entanto, existe muito trabalho envolvido antes de cada linha ser gravada na cabine do estúdio.

Quando falamos de dublagem, a localização se torna ainda mais complexa. A adaptação de um texto para legendas normalmente se preocupa mais em entregar o significado adequado ao jogador. Já a localização para a dublagem envolve mais adaptações, que incluem desde tornar o texto mais adequado à forma como “se fala” até a preocupação com a duração de cada linha de texto.

É importante destacar que, para que o resultado final da dublagem seja bom, muitas peças precisam se encaixar. O texto que chega até o ator de dublagem precisa estar bem localizado. O diretor precisa estar bem alinhado com o material para orientar bem os atores. Dubladores precisam entregar a real emoção daquele momento. Quando alguma dessas peças não está no seu devido lugar, as coisas desandam e os problemas se tornam muito perceptíveis.

Muita gente lembra do fiasco da dublagem de Mortal Kombat X com a cantora Pitty. Embora seja extremamente talentosa nos palcos, Pitty não é atriz, nem profissional de dublagem, o que por si só já poderia comprometer o resultado. A adaptação do texto para fazer jogos de palavras com as músicas da cantora terminaram por entregar Cassie Cage falando coisas como “Eu vou equalizar sua cara”, que viraram piada instantânea na internet.

É claro que existem os bons exemplos. Jogos como Overwatch, da Blizzard, incorporam com maestria aspectos culturais do nosso idioma e de seus personagens, e realmente promovem outro nível de imersão. Algumas das falas se tornaram icônicas em nosso idioma, especialmente as dos ultimates dos heróis. Não dá para deixar de citar o recente belo trabalho do elenco brasileiro de The Last of  Us Parte II e, claro, de como Ricardo Juarez tornou Kratos só seu a voz profunda entoando “garoto” em God of War.

Os desafios

localização desafios

Acima de tudo, localizar videogames conta com muitos profissionais, cada um responsável por uma parte de um resultado final que chega aos jogadores. É necessário muito trabalho em equipe e diálogo entre todos os envolvidos em cada uma dessas partes. E, na grande maioria das vezes, todos esses times trabalham remotamente!

Acima de tudo, é essencial que, além de ter um alto nível de conhecimento sobre o idioma do material original, os profissionais de localização precisam conhecer também o universo dos videogames e até de tipos de jogos específicos. É muito importante selecionar tradutores e revisores corretos para cada projeto. Por exemplo, jogos de tiro normalmente trazem nomes de armas e equipamentos militares; RPGs têm elementos, criaturas e nomes já enraizados de obras de fantasia anteriores; jogos de corrida trazem nomes de peças de carros, regras e manobras específicas.

Todo esse trabalho, muitas vezes, é feito sem que nem tradutores, revisores ou até dubladores não tenham contato algum com nada do jogo original além do texto. É muito comum que a equipe de localização tenha que traduzir nomes de objetos ou falas sem ter a mínima noção do contexto em que estão inseridos. Normalmente esses profissionais precisam ter experiência para antecipar algumas ambiguidades da língua inglesa. A palavra “key” por exemplo, pode significar “chave” ou “tecla”. Nessas horas, é necessário muito diálogo e colaboração entre a equipe de localização e profissionais das desenvolvedoras, que podem explicar do que aquele conteúdo ambíguo se trata.

Ainda, o contrário do que acontece com muitos filmes, séries e desenhos, muitos dubladores de jogos não assistem às cenas que estão dublando. Na grande maioria das vezes, eles podem apenas ouvir a faixa de áudio original para ter noção da entonação e da sua duração, para encaixar a sua fala naquele tempo. Algumas desenvolvedoras podem até disponibilizar cutscenes, mas diálogos in-game são normalmente gravados às cegas.

Por que localizar?

Um projeto de localização de um game nem sempre sai barato, mas têm impacto nas vendas e downloads de jogos. O Português Brasileiro é um dos 10 idiomas mais populares na localização de videogames. Nós temos um mercado importante e exigente e, não é a toa que cada vez mais jogos chegam por aqui com textos e vozes em português.

A localização também é uma  forma excelente de agradar os fãs. Investir um pouco mais e trazer o jogo no idioma de um determinado público pode fazê-lo sentir-se especial. Por muitos anos os fãs brasileiros de Resident Evil, por exemplo, fizeram uma extensa campanha para ter um jogo da série dublado. A vontade deles finalmente se concretizou com Resident Evil Village.

Acima de tudo, a localização é uma ferramenta de imersão, inclusão e expansão de público. Poder comprar um jogo localizado não deveria ser visto como um privilégio. Ter acesso ao conteúdo de um game no seu idioma e adaptado à sua cultura é poder aproveitá-lo de forma mais plena, como se fosse concebido também na língua que o jogador fala.