Mark Cerny: saiba mais sobre o melhor amigo do PlayStation
A interessante história de um dos nomes mais importantes do PlayStation, mas que não é funcionário da Sony
Todo mundo que acompanha de perto o desenvolvimento de games e, principalmente, de novos consoles PlayStation já ouviu o nome Mark Cerny. Com uma fala mansa e aparência inofensiva, o conhecido engenheiro de software e hardware emana uma humildade que esconde seu invejável currículo no mundo do videogame.
A verdade é que Cerny tem quase 40 anos de experiência contribuindo para as mais diversas e importantes marcas dos jogos, começando pelo Atari, passando pela Sega e chegando à Sony, onde ele foi peça chave no desenvolvimento de jogos e consoles – o que inclui até a “paternidade” do PS4 e do PS5. É uma história que poucos profissionais da indústria dos games chegam perto, então vale muito a pena conhecer!
Mark’s Marble Madness: o início de carreira
Mark Cerny começou sua carreira cedo. Em 1982 ele tinha apenas 17 anos e estudava na Universidade da Califórnia, quando foi convidado para trabalhar para a Atari. Cerny abraçou a oportunidade, desistiu de sua educação formal e, em apenas dois anos, era creditado como o designer e co-programador de Marble Madness, lançado em 1984.
Os anos 80 foram uma época bastante convidativa aos novatos no mundo do desenvolvimento de jogos, como relatou o desenvolvedor para o MCV, numa entrevista de 2013 – “em 1985 não havia quase diferença alguma entre um amador e um profissional”.
Conforme fazia um nome para si, Mark Cerny passou da Atari para a Sega, o que começou seu importantíssimo relacionamento com o Japão. Foram mais de três anos trabalhando em Tóquio, onde ajudou em títulos para o Master System e ficou fluente em japonês.
Em 1991 o criador voltou aos Estados Unidos, dessa vez como um representante da Sega – ele ajudaria a empresa a expandir suas operações no ocidente. A iniciativa foi feita através da criação do Sega Technical Institute (STI), chefiado por Cerny e responsável pela criação de jogos como Sonic the Hedgehog 2 e Kid Chameleon, lançados em 1992.
Em uma entrevista ao site Sega-16, em 2006, Cerny comenta sobre seu período no STI:
Por bem ou por mal, nós tínhamos 100% de completa liberdade criativa. Difícil de acreditar nesses tempos, não é? Só que os resultados não foram o que eu esperava. Quando uma oportunidade parecida apareceu na Universal Studios para trabalhar sem um processo formal de aprovação, vamos só dizer que eu me saí um pouco melhor nisso.
O trabalho na Universal Studios que Mark Cerny comenta na entrevista marca também o início de sua relação com o PlayStation, então é esse o tópico do próximo trecho deste artigo.
Antes de chegar à Universal, no entanto, Cerny passou pela Crystal Dynamics, marcando mais um curioso momento emblemático na história dos videogames.
A Crystal Dynamics – que já pertenceu à Square Enix e hoje tenta fugir do machado na Embracer – era um estúdio novo pelas voltas de 1992, quando contratou Mark Cerny. Ele foi o primeiríssimo membro do time, e lá trabalhou em títulos para 3DO como Crash ‘n Burn e Total Eclipse.
Mas foi em 1994 que Cerny emplacou um acordo que mudaria sua história e a do PlayStation. Aproveitando suas conexões com o Japão, o jovem fez uma visita a Tóquio, onde conseguiu um kit de desenvolvimento do PlayStation para a Crystal Dynamics, que acabou sendo o primeiro estúdio dos EUA a conseguir um desses. O executivo da Sony que autorizou a transação? Um jovem chamado Shuhei Yoshida.
Universal Studios e a Cerny Games
Ao mesmo tempo em que conquistava o primeiro dev kit do PlayStation dos EUA para a Crystal Dynamics, Mark Cerny deixava o estúdio para seu próximo emprego: chefiar a iniciativa da Universal Studios de entrar no mundo dos games, com o lançamento da Universal Interactive Studios.
Cerny trabalhou durante quatro anos para a Universal, onde soube aproveitar melhor a liberdade que tinha com seu cargo – conforme ele comentou em sua entrevista ao site Sega-16. O executivo usou a falta de supervisão para correr riscos nos acordos que fazia com estúdios:
“Nós acabamos contratando uma companhia de três pessoas chamada Naughty Dog e o resultado foi Crash Bandicoot. Nós assinamos com uma start-up de duas pessoas chamada Insomniac Games sem experiência anterior em fazer jogos e o resultado foi Spyro the Dragon.” – declarou Cerny, se gabando humildemente durante uma conferência de desenvolvedores em 2013.
Muitos de vocês já sabem, mas os dois games citados foram sucessos esmagadores, e tanto a Naughty Dog como a Insomniac foram adquiridas pelo PlayStation – em 2001 e 2019 respectivamente. Atualmente, a Naughty Dog é mais conhecida pelos seus hits com Uncharted e The Last of Us e a Insomniac se prepara para a continuação do incrivelmente popular Spider-Man.
Depois de sua temporada na Universal, uma pessoa tão inquieta em seus empregos como Mark Cerny deu um próximo passo que parece natural quando olhamos sua trajetória: a criação de uma empresa própria, de consultoria, a Cerny Games.
Aproveitando sua longa experiência e inúmeras conexões no mundo dos jogos, o executivo decidiu trabalhar diretamente com o que faz de melhor – ajudando desenvolvedores tanto de software como de hardware a fazerem as melhores versões de seus produtos.
Foi na qualidade de consultor que Cerny foi convidado a ajudar na criação do PlayStation 2, por volta de 1999. O próprio Shuhei Yoshida chamou o “gaijin”, que se juntou ao time para trabalhar no motor gráfico do PS2. Depois ele ainda participou da criação de Jak & Dexter: The Precursor Legacy e de Ratchet & Clank – dois dos primeiros títulos lançados para o novo console.
A aposta do PS4
A arquitetura do PS3 ficou famosa pela sua complexidade e dificuldade de se trabalhar. A terceira geração do PlayStation oferecia tantos desafios aos desenvolvedores de jogos que isso chegou a impactar na performance do videogame no mercado. O próprio Mark Cerny comparou trabalhar na arquitetura Cell com tentar resolver um cubo mágico, acrescentando:
Tanto a natureza única da Cell como o estado primitivo do ambiente de desenvolvimento significaram que a criação de jogos no PS3 consumia mais tempo do que em qualquer outra plataforma anterior – disse, em entrevista ao Video Games Chronicle.
Foi falando com o site também que Cerny contou a história de como se apaixonou pelo desenvolvimento de hardware, pesquisando mais sobre a história de CPUs x86 justamente por causa da situação do PS3 e da preparação da Sony para o PS4. Ele conta que passou todas as suas férias em novembro de 2007 buscando saber mais sobre o assunto, desde sua criação lá nos anos 70 até as tentativas mais recentes.
“Eu comecei a pensar, acabei de sacrificar minha folga pra investigar uma parte filosófica de um console em que eu não estou realmente trabalhando, que não será lançado por pelo menos cinco anos”, disse na conferência de devs de 2013, se referindo ao PS4. “Isso é paixão, isso é entusiasmo, talvez eu devesse considerar trabalhar nesse projeto mais profundamente.”
Foi com essa mentalidade que Cerny fez uma aposta ousada, entrando diretamente em contato com Shuhei Yoshida – vice-presidente de desenvolvimento de produtos para a Sony na época – e pedindo para ser o arquiteto chefe no desenvolvimento do novo PlayStation.
A parte mais curiosa não é apenas o fato da Sony ter aceitado a proposta de Cerny, mas o fato de terem lhe colocado na liderança do projeto sem ele ser um funcionário propriamente dito da empresa. Ele conseguiu o cargo sem sacrificar sua posição de consultor, o que fez diferença segundo seu relato:
Como um consultor, eu não gerencio empregados, não sou responsável por orçamentos, não faço apresentações para outras divisões da Sony, não rastreio progresso vs. conquistas, eu não negocio contratos. Eu fico livre para pensar sobre onde precisamos estar num período de cinco anos e trabalhar com os grupos corretos dentro e fora da companhia para fazer isso acontecer.
E na sua primeira experiência como arquiteto chefe para a criação de um novo console, Mark Cerny adotou uma filosofia que aprendeu lá no seu primeiro emprego, na Atari, para o desenvolvimento do PS4. Citando Nolan Bushnell, fundador da Atari, Cerny relata:
“Era como a famosa filosofia de Nolan Bushnell para a criação de jogos arcade, que eles deveriam ser fáceis de aprender, mas difíceis de dominar. Minha versão disso era que o console deveria ter uma arquitetura familiar e ser fácil de desenvolver games nos primeiros anos do seu ciclo de vida, mas também é necessário ter um set rico de recursos que os criadores poderão explorar por anos.”
O sucesso do PS4 em relação ao PS3 fala por si só, o que ajuda a dizer muito a respeito da liderança de Cerny em sua criação. A experiência deu tão certo que foi natural a presença dele no desenvolvimento do PS5 também – mas antes de continuarmos falando de sua colaboração apenas com o PlayStation, é interessante ver também o impacto que o seu Método teve no desenvolvimento de quase todo jogo atual. Sim, Método, com M maiúsculo.
O jeito Mark Cerny de fazer as coisas
O Método de Mark Cerny para o desenvolvimento de jogos é usado por “basicamente todo mundo na indústria”, declarou Ben Cousins, ex-dev na DeNA, falando com a Wired. “Ele foi uma influência gigante, e não tem muita gente fora da indústria que reconheça isso”.
Mas o que é esse tal desse Método? Usando sua humildade característica, o próprio Cerny já explicou uma vez:
Não é tão revolucionário. Nós não sabemos se um jogo é algo que alguém estará interessado ou não. Faz muito sentido apenas fazer uma parte dele primeiro – mas essa parte precisa ser representativa. Você não pode apenas juntar qualquer coisa.
Cerny defende que a fase de pré-produção de um game deve ser a mais livre possível, onde são testadas inúmeras ideias e nada é desconsiderado. Ao longo dessa fase, os desenvolvedores devem ir testando e vendo o que dá certo até chegar a um protótipo jogável que seja representativo do jogo final. Ou seja, como dito na citação acima, não pode ser qualquer coisa que conseguiram fazer pra testar, tem que ser algo jogável que poderia até ser disponibilizado para o público. É com esse protótipo pronto que os criadores terão uma noção muito melhor se o game vai ser interessante para o público ou não.
Na próxima fase, a de produção, é que são definidos prazos, metas, etc, para garantir que o jogo vai chegar a um produto final completo e sem grandes atrasos.
É um conceito relativamente simples, mas que mudou a indústria quando ele começou a ser implementado pelas voltas dos anos 90. A maioria dos jogos modernos segue essa premissa de desenvolvimento, mas saber o Método não é garantia de sucesso. Com o protótipo jogável em mãos, é importante saber entender as opiniões dos jogadores, algo que Mark Cerny tira de letra, segundo Andrew House.
Veteranos com boa memória devem se lembrar dos tempos de House como um dos líderes do PlayStation. Falando com a Wired, ele pareceu bem admirado com a habilidade de Cerny de “ler” jogadores:
Ele não fala nada com o jogador. Ele apenas observa o que eles fazem e como eles jogam o jogo. Eu lembro dele, bem literalmente, telefonando para falar de mudanças com desenvolvedores na hora, apenas baseado no que ele estava vendo.
Ao PS5 e além
O envolvimento de Mark Cerny na criação do PS5 foi algo muito mais amplamente divulgado no marketing do console, então é de conhecimento de um número maior de jogadores. Famosamente, tivemos até um vídeo rápido onde ele detalha um pouco do seu trabalho no console:
Logo no início do vídeo, o criador ressalta a importância que seus anos de experiência trouxeram para a perspectiva da criação do PS5:
É um trabalho muito técnico, mas os usuários finais desses sistemas são os desenvolvedores tentando fazer jogos. Então é ótimo ter trabalhado com vários times ao longo dos anos e entender um pouco sobre o que os ajuda e o que apenas fica no caminho.
O trabalho de Cerny no PS5 todo mundo conhece, o grande questionamento é o que ele tem feito desde então. Um registro de patente no nome dele, encontrado em março deste ano, indicou um novo hardware que não está presente no console atual, o que levantou especulações sobre um PS5 Pro ou o começo dos trabalhos em um PS6. Independente do que seja, indica que ele continua trabalhando de perto com a Sony.
Mas o homem multitarefas que começou sua carreira trabalhando diretamente com jogos parece não ter abandonado de vez suas raízes com software. No ano passado saiu a notícia de que ele estava dando uma ajuda ao pessoal de Jade Raymond, em seu Haven Studios, recentemente adquirido pelo PlayStation. Na época, a executiva fez a seguinte declaração em uma entrevista ao site GamesIndustry:
Eu não posso dizer muito no momento, porém isso é obviamente uma das tantas coisas que tem sido um grande atrativo e empolgante para nossa parceria com a PlayStation. É claro, Mark Cerny também é meio que um rockstar, então poder colaborar com ele é realmente emocionante.
Durante a última PlayStation Showcase, o estúdio revelou Fairgame$, o seu primeiro jogo. Não sabemos até onde vai a contribuição de Mark Cerny no título, mas se a história deste importante nome do mundo dos games nos ensinou alguma coisa é que, provavelmente, seu trabalho será importante, porém discreto.