Por que o Brasil ainda não é uma potência na criação de jogos de videogame?
Mercado brasileiro tem potencial, mas barreiras estariam mais dispostas a atrapalhar do que a ajudar
O Brasil é um gigante no consumo de videogames, com um mercado que movimenta bilhões de reais anualmente e uma base de jogadores apaixonados que rivaliza com algumas das maiores indústrias do mundo.
No entanto, quando o assunto é a criação de jogos, o país ainda patina para alcançar o status de potência global, ficando atrás de nações como Estados Unidos, Japão, Canadá e Polônia, que dominam a produção de títulos de renome internacional.
Apesar de avanços notáveis nos últimos anos, com estúdios brasileiros ganhando destaque em eventos globais, uma série de obstáculos estruturais, culturais e econômicos impede o país de brilhar no cenário mundial do desenvolvimento de jogos.
Falta de investimento e incentivos governamentais
Desenvolver um videogame competitivo no mercado global é uma jornada cara, que exige investimentos robustos em tecnologia, equipes qualificadas, marketing e distribuição.
Países como o Canadá e a Austrália se destacam por oferecerem incentivos fiscais generosos e programas governamentais que apoiam estúdios locais, permitindo que até pequenas empresas cresçam e alcancem projeção internacional.
No Brasil, porém, o cenário é bem diferente. As linhas de financiamento para a indústria de games são escassas, e os programas de apoio, como os oferecidos pela Ancine ou pelo BNDES, muitas vezes não acompanham as necessidades dinâmicas do setor.
Sem esse suporte, estúdios brasileiros, especialmente os independentes, enfrentam dificuldades para escalar projetos ambiciosos que possam competir com produções AAA, como The Last of Us ou Cyberpunk 2077 — em comparação com a alta concorrência.

Além disso, o acesso a editais culturais é frequentemente burocrático e não prioriza o desenvolvimento de jogos como uma indústria estratégica, ao contrário do que ocorre com o cinema ou a música. Essa ausência de políticas públicas robustas limita a capacidade dos estúdios de investir em inovação e de se inserir no mercado global.
Dificuldade na captação de investidores
Outro desafio significativo é a dificuldade de atrair investidores, tanto nacionais quanto internacionais. O mercado brasileiro de games ainda é percebido como de alto risco por fundos de capital de risco e publishers, devido à ausência de um histórico de blockbusters comerciais que sirvam como prova de viabilidade.
Em contraste, mercados consolidados como o norte-americano ou o europeu contam com uma rede bem estabelecida de investidores especializados, que financiam desde estúdios iniciantes até grandes produções AAA.
No Brasil, muitos estúdios precisam recorrer a financiamentos coletivos, como o Kickstarter, ou a parcerias pontuais, que nem sempre garantem a sustentabilidade financeira de longo prazo. A falta de confiança no potencial comercial dos jogos brasileiros também é agravada pela ausência de uma vitrine global para os títulos nacionais.
Enquanto eventos como a Game Developers Conference (GDC) e a gamescom atraem atenção mundial, os estúdios brasileiros muitas vezes enfrentam barreiras financeiras para participar dessas feiras, o que reduz sua visibilidade junto a investidores estrangeiros.
Escassez de mão de obra qualificada
Embora o Brasil tenha uma comunidade criativa e talentosa, com desenvolvedores que já demonstraram competência em projetos de qualidade, há uma carência de profissionais altamente especializados em áreas cruciais do desenvolvimento de jogos, como game design, inteligência artificial, animação 3D e programação avançada em engines como Unreal Engine e Unity.
Essa escassez é parcialmente explicada pela formação acadêmica: os cursos de graduação e pós-graduação voltados para jogos ainda são poucos e, muitas vezes, não acompanham as demandas do mercado internacional.

Outro problema é a fuga de talentos. Muitos desenvolvedores brasileiros, ao alcançarem um nível elevado de qualificação, optam por trabalhar em grandes estúdios no exterior, atraídos por melhores salários, infraestrutura de ponta e oportunidades de trabalhar em projetos de grande visibilidade.
Essa drenagem de talentos enfraquece a capacidade do Brasil de construir equipes robustas e competitivas localmente, criando um ciclo vicioso que dificulta o crescimento da indústria.
Barreiras burocráticas e tributárias
O ambiente regulatório brasileiro é outro entrave significativo. A carga tributária sobre hardware, software e serviços relacionados ao desenvolvimento de jogos é elevada, o que encarece a produção e reduz a competitividade dos estúdios nacionais.
A importação de equipamentos como computadores de ponta, consoles para testes e licenças de softwares especializados também é impactada por impostos e taxas alfandegárias, tornando o custo operacional muito mais alto do que em países com políticas fiscais favoráveis, como Cingapura, Irlanda ou até mesmo a Polônia.
Além disso, a burocracia para abrir e manter uma empresa no Brasil consome tempo e recursos que poderiam ser direcionados à criação de jogos. Enquanto países líderes no mercado de games oferecem incentivos fiscais e processos simplificados para startups de tecnologia, o Brasil ainda impõe barreiras que desencorajam o empreendedorismo no setor.
Cultura de consumo em detrimento da produção
O Brasil é um dos maiores mercados consumidores de videogames do mundo, com uma base de jogadores que abrange todas as faixas etárias e plataformas. No entanto, essa paixão pelo consumo não se traduz automaticamente em apoio à produção nacional.
Muitos jogadores brasileiros estão habituados a consumir jogos estrangeiros, especialmente títulos AAA de grandes publishers como EA, Ubisoft e Rockstar, e desconhecem ou hesitam em apoiar produções locais.
Essa preferência por jogos importados reflete, em parte, a falta de campanhas de marketing robustas para os jogos brasileiros e a ausência de uma cultura consolidada de valorização do produto nacional.
A percepção de que jogos brasileiros são indies ou de menor qualidade também prejudica a aceitação no mercado interno. Embora estúdios como a Aquiris (Horizon Chase Turbo) e a Pulsatrix Studios (Fobia – St. Dinfna Hotel ) tenham conquistado reconhecimento, muitos jogadores ainda não associam o Brasil a jogos de alto impacto.

Ausência de propriedades intelectuais (IPs) globais
Um dos fatores que distinguem potências na indústria de games é a criação de propriedades intelectuais (IPs) icônicas, capazes de conquistar o público global e gerar franquias duradouras. Exemplos como The Witcher (Polônia), Dark Souls (Japão) e Hollow Knight (Austrália) mostram como uma única IP bem-sucedida pode colocar um país no mapa do desenvolvimento de jogos.
No Brasil, embora haja jogos de qualidade, nenhum alcançou o status de fenômeno global. Títulos como Horizon Chase Turbo e Dofus (produzido pela Ankama, com forte influência de desenvolvedores brasileiros) são elogiados, mas ainda não têm o impacto cultural ou comercial de franquias internacionais.
A criação de uma IP global exige não apenas criatividade, mas também recursos financeiros, estratégias de marketing eficazes e uma rede de distribuição que alcance mercados como América do Norte, Europa e Ásia. Sem esses elementos, os jogos brasileiros tendem a permanecer em nichos, mesmo quando bem recebidos pela crítica.
O Brasil pode se tornar uma potência em jogos de videogame?
Apesar dos desafios, o Brasil tem mostrado sinais promissores de evolução na indústria de games. O crescimento de estúdios independentes, como Behold Studios (Chroma Squad) e Pulsatrix Studios (Fobia – St. Dinfna Hotel), demonstra o potencial criativo do país.
Eventos como o BIG Festival, o maior festival de jogos independentes da América Latina, têm colocado o Brasil no radar internacional, atraindo olhares de publishers e investidores. Além disso, o mercado de jogos mobile, que exige menos investimento inicial do que jogos para consoles ou PC, tem se mostrado uma porta de entrada para desenvolvedores brasileiros alcançarem públicos globais.
Para que o Brasil se torne uma potência, é essencial atacar os gargalos identificados. O governo precisa criar políticas públicas específicas para o setor, como incentivos fiscais e linhas de crédito acessíveis. Universidades e instituições de ensino devem investir em cursos de formação alinhados às demandas do mercado global.
Os estúdios, por sua vez, podem se beneficiar de parcerias internacionais e da participação em eventos globais para ganhar visibilidade. Por fim, a sociedade brasileira precisa abraçar os jogos nacionais, valorizando o trabalho dos desenvolvedores locais e ajudando a construir uma cultura de produção tão vibrante quanto a de consumo.
O Brasil tem todos os ingredientes para se tornar uma potência na criação de jogos de videogame: uma base de consumidores apaixonados, uma rica diversidade cultural que pode inspirar narrativas únicas e uma comunidade de desenvolvedores talentosos.
No entanto, barreiras como a falta de investimento, a escassez de mão de obra especializada, entraves burocráticos e a ausência de IPs globais ainda limitam o crescimento do setor.
Com esforços coordenados entre governo, iniciativa privada e sociedade, o Brasil pode superar esses desafios e, quem sabe, lançar o próximo grande hit que conquistará o mundo. O primeiro passo já foi dado – agora, é hora de acelerar.