A difícil tarefa de imitar a vida real em videogames
Como convencer o jogador que fazer o casual é importante?
Há dias em que você acorda com a cabeça acelerada, cheio de dúvidas, preocupações inadiáveis e a urgência de resolver dezenas de pendências para poder, enfim, começar o seu dia. A vida normal, que clama pela sua atenção de pessoa adulta, pronta ou não para seguir em frente.
Enquanto se arruma e tenta não embaçar suas obrigações, por conta das preocupações, tentando focar no dia que está por vir em meio a tantos afazeres, você passa pela sala da sua casa e faz um carinho no cachorro. Ele é um bom garoto, seu amigo. Liga a TV, acompanha o noticiário de canto de olho. Passa o seu café amargo, come uma fruta e aí sim começa a sua “missão” do dia, seja ela qual for.
Esses momentos de casualidade são o que fazem a vida ser palatável. Ser real.
Mas quando o assunto é videogame?
Pegando esse paralelo, é curioso pensar o quão sedentas pela realidade algumas pessoas são, quando o assunto é videogame. Lá atrás, a febre em torno de The Sims não foi à toa. Observar o comportamento de personagens que, por vezes, poderiam ser um espelho distorcido de quem os criou, ao começar um novo save. É fascinante pensar que, para muitos, ali estava um escape e uma pequena cápsula de destino, que abria caminho para tantas possibilidades que, por vezes, a vida real jamais proporcionaria.
Não é regra, mas a fuga da realidade inspira. E nessas inspirações vemos o dia-a-dia sendo recriado em um videogame.
A questão é que, convenhamos, The Sims é um caso à parte. A proposta de simulador da vida real é poderosa, mas a recriação dos pequenos hábitos impactam mais o jogador quando ele é surpreendido com a existência dessas pequenas mecânicas. Seja a possibilidade de puxar uma vara de pescar em meio a um RPG de mundo aberto com máquinas mortíferas, ou simplesmente cumprimentar um gatinho dorminhoco em um banco numa praça qualquer, em um jogo repleto de combates e descobertas.
Com o tempo, essas casualidades passaram a figurar nos videogames além do opcional, muito graças ao que se fazia no lado indie da indústria. Com o crescimento dos walking simulators, como Gone Home, onde andar por um corredor de uma casa vazia e redescobrir seu passado é mais importante do que sacar uma pistola e salvar a humanidade. A coisa muda de figura quando a Naughty Dog, por exemplo, entende o que estava sendo feito em jogos como esses e consegue, de maneira muito curiosa, incluir em seus jogos momentos totalmente contemplativos, em que o jogador se desconecta do ritmo acelerado e tenso, dos momentos de ação e apenas… anda. Observa. Vive, por pequenos momentos, o que seria estar naquele universo perturbador, entrando na pele dos protagonistas. Seja acariciando um animal pescoçudo pouco comum em uma cidade com tantos prédios, ou tocando uma música em um violão escondido em uma loja abandonada.
Apesar disso, os momentos “casuais” em jogos como The Last of Us e Uncharted são quase que completamente scriptados. Nesses casos, o jogo quer que você experimente um momento de respiro em meio aquilo tudo. Uncharted 4, por exemplo, quer que você jogue o Crash no PlayStation. Não porque ele acha importante que essa banalidade seja parte de uma recriação da vida real, mas sim porque ele quer homenagear o mascote clássico. Funciona? Claro! Mas as coisas vão além quando saímos do caminho óbvio e pegamos uma tangente mais… opcional, digamos.
Recentemente estive imerso no lançamento do Ryu Ga Gotoku Studio, o Like a Dragon: Ishin. Com um escopo de RPG e repleto de conteúdo, Ishin é um perfeito exemplo de como recriar a realidade e fazer com o que o jogador valorize viver a simplicidade de um dia-a-dia.
Mas como?
Na pele do ronin populista Ryoma Sakamoto, o jogador viverá uma jornada dramática e repleta de reviravoltas, em meio a momentos de humor e combates repletos de combos. Tal qual faz Yakuza, o grande sucesso do estúdio, que inspira o novo game, tanto no feeling, quanto em mecânicas. No novo Like a Dragon temos, além de tudo já citado, uma imensidão de tarefas que estão presentes para tornar aquele universo convincente. Por exemplo, você pode simplesmente sentar em um restaurante, pedir uma sopa e comer. Sem bônus de vida, sem bônus de combate. Apenas isso… um escapismo.
A questão é que o novo Ishin faz um movimento interessantíssimo em “educar” o jogador a viver naquele mundo. Com uma espécie de sistema de reputação social, cada interação com NPCs e comerciantes em geral, seu personagem ganha pontos e passa a se tornar cada vez mais “querido” – e respeitado. Seja tomando um drink em um fim de noite ou cantando no karaokê, com direito a um solo de flauta para emocionar a plateia local, tudo conta na vida mundana na sociedade imperialista japonesa.
Esse incentivo mecânico é o que faz a pescaria ser mais do que um mini-game. Faz com que conhecer os NPCs seja uma verdadeira recriação da “política da boa vizinhança”. Talvez para você baste a opção de fazer carinho no cachorro em uma praça, mas não consigo deixar de achar impressionante o esforço que Like a Dragon: Ishin impõe ao pôr, em primeiro plano, o realismo e a banalidade de se viver uma rotina em um videogame. Mesmo que eu não tenha presenciado aquela época, em uma era tão distante da nossa, eu me sinto parte daquilo. Eu sinto que preciso fazer parte. E acho que era isso que o Ryu Ga Gotoku Studio queria.
Com o tempo vemos cada vez mais jogos abraçando essas ideias. Muito se deve a Rockstar, aos walking simulators, immersive sims e até a videogames distantes dessa vibe mundo aberto ou de RPGs gigantescos. A história paga seu pedágio a títulos históricos como GTA e Deus EX. Deve-se crédito a eles e seus desenvolvedores por terem comprado a ideia de que o jogador vai se interessar por experimentar, nos mundos virtuais, pequenos flashes do que ele vive na realidade. Imitar a vida real não é novidade, mas fazer com o que jogador embarque naquela imitação e aceite mergulhar nas ideias de seus criadores é o que funciona como um xeque-mate.
Torço para ver cada vez mais esse tipo de conceito sendo desenvolvido, para que as recriações de diferentes realidades se tornem mais e mais imersivas. Afinal, no fim, estar convencido de que podemos simplesmente parar em uma esquina, respirar fundo e tomar um refrigerante, antes de cair no tapa com a máfia local e salvar o dia, é tudo o que precisamos para seguir nossas vidas.