A acessibilidade finalmente está em alta no mundo dos games
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A acessibilidade finalmente está em alta no mundo dos games

Controles como o Project Leonardo e cada vez mais configurações tornam os games mais inclusivos

por João Gabriel Nogueira

A indústria dos games já passa dos 50 anos – passa bastante dependendo do que se considera o primeiro videogame – e parece que somente de alguns tempos pra cá as produtoras e marcas finalmente abriram os olhos para a questão da acessibilidade. Apesar de existirem pessoas com deficiência (PcD) desde que o mundo é mundo, a conversa sobre tornar os games mais inclusivos para um número mais variado de jogadores pode ser considerada um tanto recente.

Como diz o ditado, no entanto, “antes tarde do que mais tarde”. As novas configurações voltadas para acessibilidade que têm aparecido nos games e os controles especialmente projetados para ajudar, como o Project Leonardo, são todos muito bem-vindos. Podemos contar com uma continuidade dessa tendência ou seria apenas hype? Para onde caminha o futuro da acessibilidade? Vamos debater esses pontos neste artigo!

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Project Leonardo da Sony

O que são configurações de acessibilidade?

Definir acessibilidade, quando falamos de jogos, é o mesmo que definir as configurações que são implementadas nesses produtos para torná-los mais acessíveis. Mas o que seriam, então, essas configurações?

Mesmo antes da acessibilidade ser debatida como tema ou aparecer com frequência como uma preocupação nos games, já existiam opções que podiam tornar os jogos mais acessíveis. Duas delas se destacam, principalmente: a escolha da dificuldade e a possibilidade de remapear controles.

Conforme mencionado no artigo sobre os games oferecerem ou não um modo easy, a opção de deixar um jogo mais fácil ajuda um número maior de pessoas a jogar. É provável que a ideia de um modo easy surgiu para tornar o game mais atrativo para jogadores que não têm vontade de se esforçar tanto para dominar as mecânicas de um jogo – seja pelo motivo que for.

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Modo easy pode ser considerada uma “primeira opção de acessibilidade”

Só que deixar o jogo mais fácil pode ser uma bela ajuda também para quem tem uma camada extra de dificuldade natural quando vai jogar. Na falta de configurações específicas de acessibilidade – que serão comentadas depois – diminuir os desafios e obstáculos num game já ajuda. Não é o ideal, mas podemos considerar uma das primeiras configurações de acessibilidade nos games.

A possibilidade de remapear controles, por sua vez, é uma configuração considerada preciosíssima até hoje para ajudar na acessibilidade dos games. Ela não tem um impacto direto na dificuldade e pode ajudar PcDs a ajustarem os comandos de acordo com a forma que jogam. Não é incomum que uma pessoa com deficiência nas mãos, por exemplo, aprenda a usar o controle de algum jeito diferente do imaginado pelos fabricantes, e a chance de mudar os comandos de um jogo é determinante para facilitar esse uso diferenciado.

Essas são duas configurações antigas nos games que aparecem antes de qualquer conversa sobre acessibilidade. Um terceiro recurso, um pouco mais recente, mas que ainda aparece antes do tema ficar popular é a legenda.

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Legendas são importantes em vários aspectos.

As legendas são de extrema importância para a acessibilidade e configurações simples de tamanho, cores e fundo podem ajudar demais a tornar o game mais acessível para um número consideravelmente maior de pessoas. Hoje as legendas são mais do que esperadas em qualquer novo jogo, inclusive em muitos títulos que não contam com outras opções de acessibilidade.

Enquanto alguns jogos ainda merecem críticas por oferecerem legendas ruins e/ou não deixarem remapear controles (a discussão do modo easy vai por outro caminho), temos cada vez mais títulos se destacando pela atenção especial que dedicam às configurações voltadas para serem mais acessíveis. E essa é uma tendência que vale a pena aprofundar neste artigo.

Opções de acessibilidade têm ficado mais comuns

Jogos modernos têm investido mais em configurações especificamente voltadas para acessibilidade, com alguns dos grandes exclusivos do PlayStation se destacando bastante na área. The Last of Us 2 foi um título mencionado como um bom exemplo a ser seguido por Gabriel Machado Cabral, o “Machadinho”.

O criador de conteúdo – que é fã de games single-player – menciona a grande quantidade de configurações do game e que amigos seus deficientes visuais conseguiram jogar TLOUS 2 do início ao fim sem precisar de ajuda. A possibilidade de jogar sozinho é muito importante quando olhamos para um game pelo viés da acessibilidade.

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As opções de acessibilidade em The Last of Us Part I & II são muito elogiadas.

Demorou para as produtoras de jogos se preocuparem com o tema, mas pelo menos a tendência que estamos vendo atualmente tem tudo para continuar e não deve ser apenas um hype passageiro – ao menos é nisso que acredita Christian Bernauer, o “Chrizeba”, presidente da AbleGamers no Brasil.

A AbleGamers é uma ONG internacional que trabalha para ajudar PcDs a jogarem. Além de levantar fundos para conseguir controles e acessórios específicos para quem precisa, a organização também promove que os jogos sejam cada vez mais acessíveis, tanto pressionando as produtoras para incluírem opções do tipo em seus games, como oferecendo cursos e orientações para desenvolvedores de quais configurações implementar.

Chrizeba afirma que tem certeza que a preocupação com configurações de acessibilidade veio para ficar e só tende a crescer:

O mercado percebe que pessoas com deficiência são consumidores, sim. É um mercado para as empresas, é uma questão legal que eles têm que cumprir (…) e a gente tem também as empresas fazendo a coisa certa. Elas entendem que o correto é, não só pela questão legal ou comercial, mas que haja o acesso a todos e que todos possam se divertir juntos e jogar juntos.

 

O presidente da AbleGamers Brasil também ressalta que os avanços na tecnologia também ajudaram as empresas a encontrarem mais soluções de acessibilidade. E isso impacta não apenas os controles e hardware, mas também os avanços nos motores gráficos dos games.

Um outro ponto bem impactante de incentivo às configurações de acessibilidade é ressaltado não apenas por Christian, mas também pelo Machadinho: as premiações.

Os dois entrevistados mencionaram a importância de algo como o The Game Awards criando uma categoria específica para a acessibilidade. Essa visibilidade e homenagem servem como um importante incentivo extra para as produtoras valorizarem mais a importância de incluir opções do tipo.

E talvez esse tipo de prestígio seja realmente determinante para as opções de acessibilidade aparecerem num game. Devido aos prazos restritos do desenvolvimento de jogos – que tantas vezes até resultam no infame crunch – configurações do tipo muitas vezes são as primeiras a serem cortadas quando os devs estão correndo para finalizar um game a tempo. Jason Schreier falou disso num artigo para a Wired que já tem mais de dez anos, mas a pressão por trás do desenvolvimento de jogos não mudou de lá pra cá.

Seja por questões mercadológicas, para obedecer às leis, para ficar bonito na foto ganhando prêmio ou simplesmente porque é o certo a se fazer (provavelmente uma soma de tudo isso), as empresas finalmente têm investido mais em soluções de acessibilidade. E finalmente surgiram os controles adaptáveis.

Adaptação é o nome do jogo

O mais importante a se entender quando falamos de pessoas com deficiência é o grande número de casos únicos que existem. E para poder multiplicar as possibilidades de customização e amparar o número máximo possível de pessoas, as soluções não devem se resumir aos jogos, mas aparecer também no hardware, na forma de controles adaptáveis.

Foi em 2018 que o Xbox lançou seu controle adaptável. 5 anos depois, o PlayStation anunciou o Project Leonardo em janeiro deste ano. O que os dois controles têm em comum é a forma que oferecem muitas possibilidades de customização, a fim de atender um grande número de PcDs.

É interessante ressaltar que a AbleGamers participou do desenvolvimento dos dois controles e ajudou o Machadinho a conquistar um do Xbox. Ele elogia bastante a experiência de usá-lo, ressaltando que é fácil de adaptar, mas critica o tempo que levou para vermos um controle do tipo.

Isso ressalta o tempo que temos que esperar por uma solução do PlayStation, que tem sido bastante elogiado nas configurações de acessibilidade de seus jogos, mas acabou demorando muito para oferecer uma solução própria na parte de controles. Infelizmente, temos apenas imagens do Project Leonardo no momento, então fica difícil especular quais serão suas diferenças em relação ao controle do Xbox. Machadinho, por exemplo, comenta que ainda não entendeu bem como vai funcionar a adaptabilidade do controle do PS5 só pelas fotos.

O Chrizeba também tentou especular sobre as possibilidades do novo controle pelas imagens – destacando que nunca viu o controle pessoalmente, então faz suas previsões pela sua experiência e pelas imagens também. Ele imagina que o Project Leonardo talvez seja uma solução mais completa direto da caixa, um controle mais “pronto”. Isso pode facilitar a configuração imediata, mas dificultar um pouco a customização. Para Christian, o principal potencial do controle é finalmente ter uma solução para o PlayStation, que é bem mais difícil de criar controles customizados de terceiros por ser um console bem mais fechado que o Xbox ou o PC.

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Project Leonardo por outros ângulos

De todo modo, esses controles vindos diretamente de suas fabricantes são muito bem vistos pela comunidade, pois o mercado é carente de soluções assim. Controles feitos sob medida para PcDs são caros, e esse tipo de alternativa adaptável não chega a ser barata, mas oferece mais opções para quem precisa.

Os cortes do Machado

Gabriel Machado Cabral tem 22 anos e viveu toda sua vida em Mogi das Cruzes, São Paulo. Sendo um criador de conteúdo de jogos com mais de 17 mil seguidores na Twitch e parceiro do SBT Games, o Machadinho chama a atenção pela forma que joga com tranquilidade, mesmo tendo atrofia muscular espinhal.

Não é à toa que um dos jogos citados por ele para falar de bons exemplos de acessibilidade foi The Last of Us 2, já que o jogador é fã do estilo single-player focado na história. Machadinho ressalta, porém, que os FPS têm um lugar no seu coração, pois foi o gênero que lhe ajudou a crescer e fazer seu nome.

E essa popularidade é importante não apenas porque hoje o criador de conteúdo tem o prazer de viver de jogos, mas também pela sua busca em promover a representatividade. Seu principal motivador para fazer vídeos e mostrar que joga desde o primeiro momento em que sentiu vontade de entrar na área – aos 11 anos – é ajudar na visibilidade de PcDs.

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Machadinho cria conteúdos sobre games no YouTube em parceria com o SBT Games

A visibilidade é uma questão constante na vida das pessoas com deficiência. Enquanto existem jogos que buscam ser cada vez mais acessíveis com novas tecnologias e configurações, existem inúmeras soluções já disponíveis que muitas vezes são simplesmente ignoradas. E claro que isso não acontece somente nos games.

Conversando comigo, Machadinho comentou que as empresas ainda pecam muito na organização de eventos, por exemplo.

O criador de conteúdo está muito empolgado para participar de eventos agora que estamos saindo das restrições sociais impostas pela pandemia do COVID-19, mas atenta ao fato de que chega a ser frustrante ver como ainda encontra problemas de acessibilidade quando visita esses eventos. Ele ressalta que as companhias devem escutar cada vez mais as PcDs e as ONGs da área para entenderem melhor como garantir a acessibilidade de seus eventos e seus jogos no futuro.

E é justamente por isso que a representatividade defendida e promovida pelo Machadinho se torna tão importante. É assim que se amplia a visibilidade das pessoas com deficiência e suas necessidades, pressionando e lembrando as companhias de oferecerem soluções para este fim que, muitas vezes, nem causam impactos consideráveis na organização ou no orçamento de um jogo ou evento.

Quem estiver interessado no trabalho da AbleGamers pode conferir o site oficial da ONG, onde estão disponíveis links para as redes sociais deles, para o Discord e para fazer contribuições. Além disso, aos desenvolvedores de jogos, o Chrizeba ressalta que agora eles ministram um curso de acessibilidade – que oferece certificado e tudo. O curso de Accessible Player Experience (APX) já tem mais de 20 alunos formados, que aprenderam como melhor implementar opções de acessibilidade em seus jogos.