Tempestades e Epidemias: Os Eventos Históricos que moldaram The Last of Us
As (trágicas) inspirações que definiram a estética e a narrativa de um clássico
Após esses oito anos de lançamento, você provavelmente deve conhecer a principal inspiração por trás dos infectados de The Last of Us: os fungos do gênero cordyceps. Afinal, por ter originado uma estética tão singular ao jogo, esta já foi a pauta de muitos artigos e vídeos da internet. Contudo, como a maioria dos videogames que buscam tornar seus universos mais críveis e autênticos, as inspirações na realidade não se limitaram à criação dos inimigos – ao menos os físicos.
Um mundo pós-apocalíptico, mesmo com seu caráter fictício, requer verossimilhança para convencer os espectadores de que tais situações poderiam ocorrer em um futuro distante ou até muito próximo, o que também favorece a conexão com seus personagens. Estando ciente desta necessidade, a equipe da Naughty Dog baseou a construção do mundo de The Last of Us em diferentes eventos históricos que envolvem problemas sociais até desastres ambientais. Vejamos agora quais foram os principais.
A força da natureza
Antes de abordar suas referências históricas, é indispensável considerar a influência literária de The World Without Us (O Mundo Sem Nós), um livro científico em que o autor Alan Weisman detalha o avanço da natureza sobre o ambiente urbano caso a humanidade desaparecesse. Com a numerosa aniquilação da população Americana e a proliferação do fungo nas cidades em The Last of Us, os sobreviventes foram forçados a viver por trás de fortalezas isoladas ou a permanecerem em constante movimento.
Devido a essa ausência, ao invés de um mundo destruído pela ação antrópica, nos deparamos com a reinvindicação das plantas, da água e dos próprios animais. Inicialmente, o jogo contaria com animais infectados como inimigos, porém, foi decidido mantê-los inofensivos para destacar este conceito. Além disso, esse ressurgimento contribui para o desenvolvimento da narrativa ao simbolizar a esperança que ainda restava ao protagonista Joel e a inocência de Ellie, ocasionalmente suprimida pelas circunstâncias de uma realidade cruel.
Entretanto, obviamente, o abandono dessa sociedade não ocorreu de forma instantânea, muito menos pacífica. O caos vivido por Joel e Tommy no dia do surto em 2013 se espalhou por todo o país, causando, ao longo de vinte anos, danos inestimáveis aos ambientes somados a conflitos entre os próprios humanos, sejam por facções ou pela básica sobrevivência.
Para representar a destruição proveniente desses eventos, o diretor Bruce Straley considerou um dos eventos climáticos mais devastadores dos Estados Unidos da América: o furacão Katrina em agosto de 2005. Com ventos superiores a 250 km/h, este ciclone tropical provocou 1833 mortes (registradas) e forçou a maior diáspora da História do país com a migração de mais de um milhão de pessoas, além de prejuízos econômicos superiores a US$ 125 bilhões.
Além dos próprios ventos, em consequência da falha das represas, o ciclone desencadeou a inundação de 80% do município de New Orleans, o mais populoso do estado da Louisiana (onde se passa Resident Evil 7 biohazard, que inclui uma forte tempestade como um ponto-chave de seu enredo). Em The Last of Us, podemos ver o reflexo desta inspiração nos cenários de Pittsburgh, no estado da Pennsylvania.
Ainda que nenhum desastre natural possa ter acontecido ao longo dos vinte anos da história do jogo, a falta de monitoramento e manutenção de represas e usinas hidroelétricas em longos períodos pode resultar em seus rompimentos, com vazamentos de água e outros fluidos de potencial catastrófico a cidades próximas.
As imagens das inundações serviram de grande base estética, mas não foram a principal. Durante o desenvolvimento de The Last of Us, Bruce Straley havia comprado um livro de fotografias chamado After The Flood (Após A Inundação), uma ampla coleção de registros da destruição deixada pelo furacão Katrina em New Orleans. Elas foram produzidas por Robert Polidori, um dos mais respeitados fotógrafos de larga-escala, isto é, a captura de vastos ambientes urbanos, interiores e arquitetura. Entre seus trabalhos, estão imagens do desastre de Chernobyl, a arquitetura de Havana – capital de Cuba, e o centro da cidade do Rio de Janeiro.
Nas palavras de Straley, as fotografias de Polidori não apenas serviram como inspiração visual, mas também como um estímulo para a narrativa ambiental, ou environmental storytelling. Em design de jogos, essa se trata, basicamente, da arte de contar uma história através do próprio nível ou cenário, seja ele interativo ou não, sem a necessidade de diálogos expositivos ou cenas específicas. Essa é uma técnica presente no mundo dos jogos há muito tempo, como em Resident Evil (1996) ou Fallout (1997), mas que recebeu abordagens inovadoras com o avanço da tecnologia. Half-Life (1998), um dos jogos favoritos do diretor criativo de The Last of Us, Neil Druckmann, é amplamente reconhecido como revolucionário por ter elevado tal conceito em narrativas lineares.
Por priorizar a jornada principal de Joel e Ellie, as histórias de outros sobreviventes ou acontecimentos relevantes são integrados de modo não invasivo aos ambientes por onde os protagonistas passam, sendo complementadas com arquivos de texto, pôsteres, fotos, mapas e outros artefatos coletáveis.
Exposição é uma chatice, certo? Você não quer martelar a cabeça de todo mundo o tempo todo. Deixe ser sutil, deixe os pedacinhos serem recolhidos. Garanto que há uma tonelada de coisas que você perdeu e que outra pessoa vai perceber. Essa é a parte divertida disso. Dependendo de como você joga, qual é a sua perspectiva naquele momento e de onde você está, você verá coisas diferentes nesse ambiente. – Bruce Straley
A força da discórdia
Tragicamente, o contexto dessa arrasadora tempestade não se resumiu aos desastres naturais. A humanidade também causou os seus próprios.
New Orleans, a cidade mais afetada, tinha cerca de 28% da população vivendo na pobreza. Quase 70% dessas pessoas eram afro-americanas, cujo grupo étnico representava 67% do município. Os impactos do ciclone tropical foram generalizados, mas foram mais cruéis aos afetados pela desigualdade social. Foi emitida uma ordem de evacuação e entre 80% e 90% da população escapou antes do desastre, porém, muitas das pessoas pobres que não tinham condições financeiras para o acesso a automóveis ou meios de comunicação ficaram na cidade.
Apesar de muitos terem se abrigado no estádio de Louisiana Superdome – que teve o teto rompido durante o primeiro dia da tempestade, vários ficaram ilhados em suas próprias casas ou sem abrigo pelas ruas. Os estoques de comida e água potável eram muito limitados e não havia energia. A situação sanitária também era precária mesmo dentro do estádio, com pessoas adoecendo pela incapacidade de atender necessidades básicas. Para elas, era uma condição apocalíptica.
O furacão se dissipou no dia 30 de agosto, mas os problemas estavam longe de acabar. Houve alguns resgates pela guarda costeira e por voluntários, mas o governo federal dos EUA ainda não havia tomado uma iniciativa. O desespero levou parte dos sobreviventes a saquearem pontos de comércio em busca de alimentos e outros itens básicos, porém, de acordo com relatos, apesar de minoritária, também houve disputa por bens materiais.
Em meio à confusão, houve flagrantes de violência, mas também denúncias de linchamentos e abuso sexual. No entanto, é difícil concluir quais foram verdadeiras e quais não passavam de perspectivas exageradas. Após viverem esse caos, as vítimas compararam suas situações a prisioneiros de guerra e denunciaram condutas das autoridades descritas como arbitrárias e vergonhosas.
Com a declaração de estado de emergência em Louisiana, foi permitida a suspensão de liberdades individuais, ou direitos civis. Com isso, as forças policiais, que realizavam o serviço de resgate, passaram a deter qualquer atividade que consideravam nociva. Em um caso, que ficou conhecido como a controvérsia de Gretna, policiais armados impediram que sobreviventes famintos de New Orleans saíssem do local através da principal ponte que conectava ambas as cidades.
Os oficiais do governo federal, incluindo o presidente George W. Bush, não estavam informados do quão grave era a situação de New Orleans, em partes devido à falha dos sistemas de comunicação, danificados pelo evento climático. O exército Americano iniciou a preparação das operações de resgate apenas no dia 1 de setembro, começando-as efetivamente no dia 2. Já que cerca de 100 mil pessoas estavam na cidade, levaram dias até que as circunstâncias fossem controladas.
A ineficiência em acudir a população mais pobre antes da tempestade e o longo atraso no envio de recursos e na realização dos resgates tornaram o desastre de Katrina um dos episódios mais lamentáveis da História dos EUA. George W. Bush sofreu graves críticas, o que gerou um enorme impacto político e acusações de que a administração do presidente não se importava com a população afro-americana, com o próprio admitindo publicamente sua demora em tomar decisões. Dezesseis anos depois, New Orleans e sua população ainda enfrentam os danos deixados por esse passado.
Esse cenário caótico é um notável exemplo dos contextos sociais, culturais e políticos que determinam tais situações e de como as reações humanas se desenrolam diante do colapso. De acordo com Neil Druckmann, analisar e reproduzir o comportamento das sociedades em condições extremas foi necessário para desenvolver personagens que correspondessem plausibilidade. Por esse motivo, em The Last of Us, pode-se refletir muito além da decadência estética que provém dessas inspirações.
É interessante o que as pessoas são capazes de fazer quando enfrentam a extinção e quando estão tão desesperadas. Você consegue ver o melhor e o pior dos homens. – Neil Druckmann
A força do medo
Para alguns, talvez The Last of Us seja assimilável ao contexto da pandemia de COVID-19 em diversos aspectos, porém, é claro, ninguém em 2013 podia prever que isso aconteceria em menos de uma década. Essa assimilação só foi possível com o estudo do passado, especificamente, com as maiores epidemias dos EUA no século XX.
A pandemia da gripe espanhola, também chamada Influenza A ou H1N1, foi a segunda maior de toda a História. Sabe-se que, no mínimo, 17 milhões de pessoas morreram ao contrair o vírus em 1918 a 1920, mas tal número se refere apenas às mortes registradas. Com a contagem limitada devido às dificuldades da época, acredita-se que a estimativa seja muito maior, com teorias que variam entre 25 milhões, 50 milhões ou até 100 milhões de vítimas.
A única solução para combater a gripe espanhola foi o distanciamento social, embora tardiamente com milhões de vidas já perdidas. Escolas, teatros e outros pontos de encontro foram fechados, o transporte público foi limitado e outras medidas foram tomadas para evitar aglomerações desnecessárias. Foram realizadas campanhas para difundir o uso de máscaras, com o governo o propagando como “um dever patriótico”. Na Califórnia, quem não as utilizava era chamado de “slacker”, algo como “preguiçoso”, um termo direcionado às pessoas que se recusaram a prestar serviço durante a Primeira Guerra Mundial.
As tentativas de desenvolvimento de vacinas foram malsucedidas no período – obtendo sucesso apenas na década de 1930 – e a ineficácia de outros medicamentos contribuía para o pessimismo. A paranoia alimentava conspirações sobre o surgimento da doença em países ou etnias específicas e estimulava concepções xenofóbicas. Direcionar a culpa ao outro sempre foi um comportamento recorrente em epidemias durante toda a História, independentemente do contexto social.
No enredo de The Last of Us, a produção de vacinas fracassou e os EUA foram perdendo progressivamente o controle do país na medida que as polarizações políticas se intensificavam, submetendo as cidades à lei marcial e favorecendo o surgimento de milícias opositoras, como os Vaga-lumes. Mesmo enfrentando criaturas monstruosas sedentas por carne, os conflitos ideológicos foram os pontos determinantes ao dividirem a sociedade e reduzirem-na a frágeis cacos de vidro.
Lemos livros sobre a gripe espanhola na virada do século e como uma cidade inteira se fecharia devido ao medo de ser infectada. Também lemos sobre a poliomielite, a reação das pessoas a uma pandemia e como elas ficam com aversão a outros grupos. – Neil Druckmann
Como mencionado por Druckmann, o vírus da poliomielite, ou paralisia infantil, foi outra fonte de terror entre os cidadãos dos EUA. Na década de 1950, o país enfrentou sua pior epidemia com a doença, o que motivou muitas mudanças em seu sistema de saúde e na fiscalização de vacinas e medicamentos. Para o jogo, o estudo deste contexto foi importante ao incrementar a compreensão de como diferenças culturais e de classe podem moldar as perspectivas de culpa em momentos de crise.
Certamente, existem outros momentos de nossa História que serviram de inspiração à Naughty Dog, diretamente ou indiretamente, que não foram mencionados pelos desenvolvedores. Videogames são arte – arte é cultura – e ela é consequência de toda fração de tempo que compõe nossa realidade, sendo assim um dos diversos espaços em que a humanidade explora as incertezas sobre o mundo e sobre si mesma. O passado é a chave para o futuro pela natureza imutável do homem, pois ideologias e crenças mudam ou desaparecem, mas o ódio, o amor, a ganância e a reciprocidade farão parte de todos nós até o último suspiro.
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