The Last Guardian: Vale a pena?
Sabe aquela sensação de vazio ao concluir um bom livro? Você começa a conhecer a história, se envolve com a trama, cria vínculos com os personagens, reflete sobre os acontecimentos e, sem perceber, está totalmente imerso em um outro universo.
Mas, quando a última página se faz presente, surge uma melancolia, uma tristeza. Despedidas nunca são agradáveis, principalmente de pessoas que você aprecia.
Com The Last Guardian, a situação é semelhante. Ao subir os créditos na tela, possivelmente, você vai sentir algo parecido. Entretanto, o abatimento é apenas a certeza de que os momentos pelos quais você passou valeram a pena. E se você desejou que o jogo durasse um pouco mais, foi porque valeu a pena.
Como diz o filósofo Clóvis de Barros Filho: “A felicidade é um instante de vida, que você gostaria que durasse um pouco mais“. E The Last Guardian vale a pena. Fumito Ueda entrega a experiência prometida – um conto de uma amizade improvável entre um garoto e uma mítica criatura.
“Quem lê, viaja“, dizem os apaixonados por histórias. Então acompanhe conosco a revisão de um jogo que levou um longo tempo para ser concluído.
Reza a Lenda…
O enredo de The Last Guardian é pouco elaborado. Não existe uma construção de personagens, diálogos impactantes ou mesmo uma contextualização aprofundada. O jogo simplesmente arremessa o jogador para o começo sem se dar ao luxo de introduzir um texto, cutscenes ou introdução. Você é um garoto sem nome que acorda, misteriosamente, em uma espécie de caverna ao lado de uma enorme e pitoresca criatura. A única abordagem é a voz de um narrador que diz: “E foi assim que tudo começou“, deixando claro que a história é narrada por ele mesmo no futuro.
Mas, o charme do jogo não é este de qualquer forma. The Last Guardian é centrado na narrativa, não no enredo. E o conto explica como surgiu uma bonita amizade entre o garotinho e o feroz animal.
Logo no início, já começam as primeiras interações entre Trico, a fera, e o menino sem nome. Mesmo que a besta seja amedrontadora, a ingenuidade da criança fala mais alto e ela escolhe ajudar o bicho sem segundas intenções. A primeira lição de The Last Guardian nos é oferecida assim, logo nos primeiros minutos. Amizade não precisa acontecer entre indivíduos necessariamente iguais. Na maioria das vezes, é justamente o contrário. Ela é um complemento. Uma adição que serve para dividir momentos, bons ou ruins.
No princípio, O Guardião é agressivo e resiste às abordagens. Seus olhos brilhantes, sua postura agressiva e seu tamanho avantajado afugentam. Mas, como em todo relacionamento, tempo e ações são responsáveis para construção sólida de um sentimento verdadeiro.
E aos poucos, as bases de uma amizade – reciprocidade, lealdade, ajuda mútua e confiança – vão formando os alicerces do jogo. The Last Guardian é isso, uma história de como um menino somou forças com um animal para, juntos, escaparem do calabouço.
Basicamente, a dinâmica do jogo consiste na resolução de puzzles. Estes quebra-cabeças servem para progressão, abertura de caminhos para Trico. Em cada local existe algo a ser feito para avanço. Abertura de uma porta, liberação de uma passagem ou plataforma. Em essência, como ambos se encontram nas profundezas de desconhecidas ruínas, eles devem escalar entre os locais para, no topo, escaparem do local.
E os desafios são enormes. A genDESIGN, estúdio responsável, desenvolveu uma experiência minimalista, sem menus, árvore de habilidades, mapa, barras de energia, magia…nada disso está presente aqui. Na tela, são exibidos somente o menino e o animal. As excessões ficam por conta de instruções de comando: pegar um artefato, acionar uma alavança, empurrar um caixote – isso quando você está bem próximo destes.
Isto impacta diretamente no gameplay. Salvo no começo, o jogo não dá nenhum indicativo de como progredir ou que deve ser feito, muito menos como fazer. É tudo por conta do jogador. A principal habilidade a ser aprendida é a observação.
Por conta disso, em vários momentos é comum ficar completamente desorientado. O que deve ser feito? Como eu saio deste lugar? Ao contrário da maioria dos jogos que praticamente gritam para os jogadores os objetivos, indicando locais de interesse, ações necessárias, etc, The Last Guardian reforça o uso das habilidades de raciocínio lógico.
Se por um lado esta é uma premissa interessante, nos confrontando com desafios, por outro, alguns podem se sentir frustrados. Durante os testes, em vários momentos ficava um pouco a sensação de desapontamento por não conseguir entender o que é para ser feito. Mas, logo em seguida, quando a “eureka” se fazia presente, era reconfortante.
Houve ainda, a sensação de impotência. Em outros quebra-cabeças, era fácil perceber o que era para ser feito. O problema ficava na execução. “como eu vou fazer isso?” foi uma frase que usei bastante ao longo da experiência. A solução não era clara o suficiente.
Não que os problemas fossem complexos demais, mas o game-design contribuiu significativamente para a impressão da confusão mental. De forma geral, eles são bem legais e agradáveis. O que conta muitos pontos positivos para o título, já que este é o seu principal aspecto de jogabilidade.
Somado a isso, temos o temperamental Trico. Ele é necessário para maioria das ações, mas nós não o controlamos diretamente. No máximo, podemos torcer para que ele atenda aos pedidos, como ficar de pé sobre uma pilastra, para que então seja possível acessar uma plataforma, acionar uma alavanca que só então abre uma passagem, por exemplo. Acontece que o bichano é imprevisível, e não faz nenhuma questão de ser prestativo às vezes, gerando um misto de sensações.
Ainda na jogatina, existem os confrontos com espécies de soldados das ruínas. Mas, o menino não combate diretamente as ameaças. Quem elimina os inimigos é Trico, de forma bastante voraz. O garotinho pode ajudar de maneira indireta somente.
Gênio Indomável
A grande estrela do jogo é Trico, uma espécie de animal híbrido: uma formação de cão, gato e pássaro. A fera, além de bela, é esplêndida, tanto visualmente como sua inteligência de comportamentos.
Se na história dos videogames já acompanhamos diversos tipos de NPCs interessantes – Dogmeat em Fallout 4, os Pets da Nintendo, os corceis de Red Dead Redemption, a filha do presidente em Resident Evil 4 – nenhum deles no entanto se assemelham ao animal mítico de The Last Guardian.
O que o diferencia dos demais é o seu comportamento e naturalidade. Ele age exatamente como se espera que um bicho aja – com os instintos. Isso tem seus prós e seus contras.
Por exemplo: no começo da aventura, os cenários eram todos mais fechados, com poucas áreas livres. Na primeira vez que Trico viu a luz do dia, em uma área mais aberta, ele saiu em disparada, saltitante e feliz. Se atirou na primeira poça d’água com um brilho nos olhos bastante característico. Situações semelhantes nós acompanhamos em cães quando ficam muito tempo presos. Ao serem soltos, eles agem da mesmíssima maneira.
Em outra, Trico se recusava a obedecer aos comandos – é possível pedir para que ele salte, use as garras, use a pata para esmagar ou venha em direção ao menino. Na ocasião, a intenção era escalar o animal para acessar uma plataforma mais distante. Contudo, o bicho não se posicionava no local desejado, mesmo com pedidos calorosos. A situação chegou ao ponto de eu acreditar que a solução não era a qual eu estava pensando. Longos minutos após, sem que eu ordenasse e no melhor humor de gato, Trico se posiciona exatamente onde eu desejava anteriormente, baixa a cabeça gentilmente para escalada e salta rumo ao objetivo.
O peludo também é curioso. Em outra parte, quando me deparei com uma carroça, o objeto aparentemente era desconhecido da fera. Com curiosidade, ele cheirou as madeiras, passou as patas e ficou um tempo observando o rústico meio de transporte.
Mas ele também é inquieto. Fica pouco tempo parado no mesmo lugar o que gera naturais transtornos. Em uma experiência, eu precisava saltar da cabeça de Trico para uma beirada. Devidamente posicionado, preparando para o salto, quando Trico movimenta a cabeça 1 segundo antes, fazendo com que o destino fosse o abismo. Rapidamente o amor foi substituído por ódio. A linha que separa o amor do ódio aqui é tênue.
Trico não é um animal de estimação. Ele é uma criatura selvagem. Talvez explique seu comportamento intempestivo. Isso pode levar os jogadores à loucura – ficar submisso a algo incontrolável.
The Last Guardian é assim, conta com momentos iguais a estes, memoráveis e, mesmo que a princípio sejam irritantes, eles são apaixonantes. É impossível não se encantar com Trico.
Amigo, estou aqui…
“Amigo eu estou aqui” é uma canção que muitos certamente a conhecem através do sensacional Toy Story. Em suma, ela explica que amigo é pau pra toda obra. E é disso que se trata TLG.
No início você não se importa, tem-se apenas um sentimento de admiração pelo corpulento Trico e seu andar trovejante, mas na medida que os obstáculos vão sendo superados, cria-se um vínculo verdadeiro e fiel. O garotinho se importa com a besta e o bichano zela pelo bem estar do menino.
Estes laços provocam situações emocionais de altíssimo impacto, principalmente após as batalhas quando Trico está cravejado de lanças. Mesmo que isto não influencie diretamente, você corre em socorro para remover os espetos e o faz sem pestanejar. Você se importa.
Menino e fera constroem um relação singular de confiança, ajuda mútua e carinho. Como ficar indiferente quando Trico, sem avisar, baixa a cabeça próximo ao personagem controlado pelo jogador e começa a se esfregar, pedindo um carinho? Você responde de imediato.
Mais próximo do fim, a sinergia da dupla está em um nível tão elevado que muitos comandos nem precisam ser mais pressionados. Basta você subir na fera e vê-la saltando entre as pilastras rumo acima. Se você se jogar de uma grande altura, Trico o salva da morte eminente. Brilhante.
Jogo de 2016 com cara de 2002
O longo tempo de desenvolvimento do projeto impactou diretamente no resultado. A jogabilidade é como nos clássicos Shadow of the Colossus e ICO. Na época, funcionava muito bem pois era um padrão. Já em 2016, nem tanto.
The Last Guardian conta com comandos bem diferentes dos jogos tradicionais, o que gera uma natural estranheza. Você se sente jogando um jogo antigo. A readaptação leva um pouco de tempo. Não que seja ruim ao ponto de comprometer, mas é estranha nos dias atuais. Uma atualizada nos controles do personagem e nos comandos não fariam nenhum mal e manteria intacto o espírito de “sucessor espiritual” de SOTC.
Ao contrário a jogabilidade, o visual é sim bastante atual. TLG não é um jogo fotorrealista e nem preza por gráficos de alta definição. Trata-se de um estilo artístico belíssimo e que satisfaz aos olhos. A penugem de Trico por exemplo, se destaca.
Essa câmera
Se a jogabilidade acaba não interferindo muito, já que a volta ao passado não é tão complexa assim, a câmera por outro lado é terrível em vários momentos.
O problema é o seu posicionamento. Ela tenta, automaticamente, focar no personagem em alguns momentos e isso acaba gerando uma experiência desagradável. Trico é uma criatura grande, você sabe. Mas, em muitas partes, os cenários são bem apertados e, quando em cima do bicho, a câmera tenta focar no menino. Isso faz com que jogador tente reposicionar a visão, mas o cenário a atrapalha, o bicho se movimenta e tudo fica uma lambança. Some isso à jogabilidade de 2002 e você tem todos os ingredientes de uma fórmula bem arriscada.
Mesmo que ela possa ser controlada manualmente pelo analógico da direita, em várias situações estes closes bruscos atrapalham muito. Principalmente quando você está tentando observar o cenário para resolver algum mistério.
Às vezes, quando a câmera faz um movimento não planejado, tem-se a sensação de que alguma cinemática terá início, mas nada ocorre.
Outros infortúnios
Um outro problema, menos comum que a câmera, mas que acontece, diz a respeito ao framerate. Em várias ocasiões houve quedas bruscas na taxa de quadros, deixando o jogo lento. Além disso, em alguns pontos o jogo simplesmente entrava em loading inexplicavelmente.
Por fim, um bug chegou a atrapalhar a progressão. Próximo ao final, Trico precisava fazer um longo salto de uma plataforma para outra. Estava tudo certo: local e posicionamento. Sugeri então que a fera saltasse rumo ao alvo. O bicho se movimentou, a música alternou para um embalo épico, indicando que o salto seria algo monumental, a criatura tomou distância, observou o ponto e….não foi.
Trico simplesmente não ia sob nenhuma circunstância.
Após muito tempo tentando. Eu simplesmente desisti. Fechei e abri o aplicativo novamente, repeti o ritual e tudo funcionou adequadamente. Por algum motivo, a sequência não iniciava antes.
O Último Guardião
The Last Guardian cumpre o prometido. Os fãs de Shadow of the Colossus e ICO vão gostar muito da experiência. O novo projeto de Fumito Ueda é, de certa forma, um alívio para aqueles que acreditavam que o game seria um fracasso, em virtude é claro dos problemas de desenvolvimento.
O jogo é realmente um ensaio memorável. Aqueles que gostaram da proposta – puzzles, relacionamentos, progressão vertical e aventura – vão apreciar. Entretanto, o time de desenvolvimento perdeu a oportunidade de oferecer um jogo 10/10, devido é claro aos problemas técnicos aqui elencados.