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Por que existe a guerra de consoles? A “escolha de um lado” e o fanatismo

A guerra de consoles é travada desde os primórdios e nada mais é do que um aspecto da natureza humana. Confira nossa reflexão:

por Bruno Micali
Por que existe a guerra de consoles? A “escolha de um lado” e o fanatismo

Desde que somos o que somos, pertencemos a grupos. Em sua obra, o filósofo grego Aristóteles já tentou explicar por que vivemos coletivamente. Somos, afinal, “animais políticos”, de acordo com uma de suas teses, elementos que buscam propósitos em comum, protagonistas e antagonistas.

Isso ocorre desde os tempos primitivos e, na verdade, se alastra para a cadeia de quaisquer seres vivos. Com as redes sociais, urge, em qualquer um de nós, uma necessidade compulsiva de falar sobre as coisas, de manifestar opinião, de compartilhar sentimentos. Raramente consumimos alguma coisa sem tirar uma foto, escrever um tweet ou gravar alguns stories, especialmente quando essa atividade envolve games.

Formam-se, então, grupos com afinidades sobre o assunto, fomentando discussões, trocando ideias a respeito de conteúdo, combinando podcasts, lives e o que mais for necessário para que simplesmente se debata um tópico de comum interesse a todos.

E assim nasce a avalanche de podcasts que têm inundado os serviços de áudio, aspas sensacionalistas arrancadas de frases de impacto que estampam miniaturas nas plataformas de vídeo, discussões ao vivo e outras trivialidades da modernidade. Diferentes preferências começam a se acentuar nas bolhas: pessoas que gostam de PlayStation são alimentadas por outras que possuem esse mesmo gosto e vice-versa. O mesmo raciocínio vale para Xbox, Nintendo, Sega, PC ou o que mais você preferir.

consoles

O ser humano e o “pertencimento” a um grupo

Estamos falando, inexoravelmente, de grupos. No futebol, são torcidas. Na natureza, são bandos. Na igreja, são cultos. Em todos eles, um fator prejudicial em comum: fanatismo. Que se traduz na “guerra de consoles” para defender um assunto, objeto, marca ou entidade por entender que ela é superior ao trabalho da marca concorrente. E não me entendam mal: as ações e provocações que as empresas fazem umas com as outras são, até certo ponto, necessárias para a saúde do mercado – e o bolso do jogador.

Essa fronteira é cruzada quando o lúdico dá lugar ao sombrio e ao sádico, usando games apenas como desculpa subliminar para a proliferação de ideias piores. Em outras palavras: tudo bem PlayStation brincar com Xbox ou Xbox brincar com PlayStation, ou a Nintendo brincar de ambas, e vice-versa para tudo – incluindo o PC na equação.

Só um chato de galocha para não rir dos incontáveis memes que surgem na internet diariamente. Eu genuinamente me divirto com todos eles. Ocorre que, no Brasil, a “escolha por um lado”, e não por todos, acaba sendo um “paredão” para a maioria dos brasileiros em função de um elemento crucial: preços.

três plataformas

Paguei caro, não falem mal

No Brasil, existe uma certa animosidade “diferenciada” sobre os games: preços. Com o salário-base do nosso país e os reajustes salariais que não acompanham o ritmo da inflação, as coisas sempre serão mais caras do que aquilo que o brasileiro pode gastar – raciocínio que vale para produtos de consumo de diversos setores, cada vez mais onerosos.

Nesse contexto, o jogador precisa se deparar com a bifurcação da escolha. Ele vai ponderar sobre os prós e contras de cada plataforma, identificar os títulos favoritos, fazer uma matemática planilhada de tudo que pretende jogar naquele ano para ver o que consegue comprar no lançamento e o que pode ser adquirido em promoções posteriormente.

Esse esforçado brasileiro, que não desiste nunca, vai também observar que vantagens a plataforma pode oferecer em serviços de assinatura, o catálogo das lojas virtuais, os valores praticados em reais, os aplicativos de streaming, os recursos sociais, as funções multimídia etc.

Sonic e Tales

Na impossibilidade de adquirir todos os consoles, o comprador vai, inevitavelmente, se deparar com a escolha. Afinal de contas, estamos falando em R$ 3.900 a R$ 4.500 num PS5 ou num Xbox Series X ou “módicos” R$ 2.300 a R$ 2.500 num Xbox Series S. Um pouco abaixo disso, e com outra proposta, vem o Switch, na faixa dos R$ 1.900 a R$ 2.200. Novamente, tudo é uma questão de perspectiva para identificar qual plataforma funciona melhor para qual perfil de jogador.

Em qualquer alternativa, a escolha é cara. A escolha vai ser defendida. Vai ser honrada e blindada, protegida a sete chaves. Pagar 4.500 reais num console pra ver gente falando mal dele? Ou 2 mil que seja? Nem a pau, Juvenal. Não gastei meus 18 salários juntados em 1 ano e meio para ouvir asneiras sobre a plataforma que escolhi. E vou encontrar outros que defendam essa honra com o mesmo ímpeto.

E assim surgem as bolhas fanáticas e cegas, em que um alimenta o outro com notícias ou fatos vomitados do além, só para a plataforma continuar sem defeitos, sem críticas ou sem problemas crônicos que, se endereçados, poderiam melhorar a qualidade de vida dela – mas isso, em primeira instância, é dar o braço a torcer, e o que vale é o discurso.

Sonic e Mario

O discurso e o pão-e-circo

O discurso, muitas vezes, se torna pão-e-circo, pois as discussões se transformam num enorme coliseu de ignorância. Guerras de consoles existem desde sempre e tiveram aguda presença na década de 90, nos idos de Nintendo e Sega, com Sony entrando em campo no ápice do período e Microsoft encontrando seu lugar ao sol anos depois.

Não tínhamos, no entanto, as redes sociais, que cederam espaço para que todas as vozes falassem, em pluralidade, sobre todos os assuntos. Esse fato, analisado isoladamente, é mágico do ponto de vista da democratização, mas, como tudo nessa vida, também acarreta consequências, como o lado sombrio do ser humano protegido pelo anonimato.

Portanto, o fanatismo se tornou diversão. E não me entenda mal: todo mundo tem direito e ser fã! De um console, de um herói, de um lugar, uma celebridade, um personagem, qualquer coisa. O “fanboy” pode entrar no balaio sem nenhuma cerimônia. O problema não é ser fã ou fanboy: é se comportar igual um animal.

Jogos 16 bits

E aí, na bolha, esse animal encontra diversos animais que reverberam discursos de outros animais, achando que tudo é lindo e maravilhoso e que ser assim é normal – o resto é que tá errado, o sistema que é comprado, a mídia que é X ou Y e toda aquela ladainha preguiçosa que conhecemos. Em suma: esse animal não vai tolerar críticas ao seu produto de 2 mil ou 4 mil reais.

Concorrência mais que necessária

No Brasil, a discussão ganha uma outra proporção. E isso tem escala cultural, eu diria, em todas as camadas da sociedade. Num mundo ideal, todos teriam todas as plataformas ou até mesmo tempo para consumi-las – aqueles que não as têm por opção, e não por uma questão monetária, são privilegiados.

O pertencimento é algo inerente à natureza humana. Somos seres sociais construídos, hoje, pelo compulsivo desejo de compartilhar as coisas na internet e de fazer parte de grupos que fomentam as mesmas ideias que nós. O ser humano gosta de pertencer a bolhas e, traçando limites, precisa delas para manter um mínimo de sobriedade.

DualShock 3

Guerras de consoles são divertidas e, até certo ponto, necessárias para que exista a concorrência. Nos anos 90, o mercado publicitário explodiu ao explorar exatamente essa brecha.

Quando o embate envolve marca com marca ou pessoas falando de marcas, os memes serão sempre bem-vindos. Mas quando qualquer fronteira de educação é transgredida, os protagonistas da barbárie devem ser despejados num coliseu para lutarem igual gladiadores.

Nós, da plateia, ficamos no pão-e-circo mesmo.