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Jogos de mais, tempo de menos: estamos “embriagados” diante de tantos games?

Usamos nosso tempo para trabalhar e ter dinheiro aos jogos. Mas aí não sobram brechas para jogar tudo que compramos. Esse paradoxo só deve “piorar” no futuro. Reflita conosco aqui

por Bruno Micali
Jogos de mais, tempo de menos: estamos “embriagados” diante de tantos games?

A noção de espaço-tempo é algo que remonta à ciência, à filosofia, aos estudos de física e assuntos correlatos, fazendo-nos refletir sobre a passagem das coisas, os momentos de “déjà vu”, isto é, quando temos a estranha sensação de já ter estado em algum lugar durante um determinado momento, mas sem saber explicar como…

O fato é que o tempo permanece como inimigo inesgotável da vida de todos nós: ele não para, não refaz as coisas e, sobretudo, não devolve o que passou. Portanto, o ser humano é compelido a fazer escolhas ao longo de sua trajetória, e elas são cada vez mais seletivas conforme envelhecemos. Isso é tão inevitável quanto o oxigênio que precisamos respirar todos os dias.

E serve para tudo: viagens, cursos, rotas para ir a um destino, um prato no cardápio, games, séries, filmes, livros, passeios, roupas…tudo é uma escolha. Exercitamos a seletividade a todo momento, pensando naquilo que melhor funciona a nós, entre dinheiro gasto, tempo despendido e, é claro, o prazer pessoal que uma aquisição traz.

PlayStation games

Liberte-se: não dá para jogar tudo

No recorte de games, essa reflexão tem sido objeto de amplas discussões na indústria. Se na geração PS1 tínhamos uma biblioteca com cerca de 200 a 400 jogos, no PS2 isso mais que quadruplicou sem muitos rodeios, beirando a casa dos 2 mil ou mais.

No PS3, a quantidade foi igualmente exponenciada, atingindo um ápice de 3 mil títulos ou além. O PS4, por sua vez, contempla um total de quase 5 mil jogos, enquanto o PS5 pavimenta caminho para expandir ainda mais essa base. O mesmo vale para o Xbox e a Nintendo – com números que oscilam e alternam, sim, mas dentro de um raciocínio crescente. No PC, então, é praticamente impossível de se mensurar alguma coisa, afinal, trata-se de uma plataforma que cruza gerações sob princípios igualitários de compatibilidade.

Em contraste a esse cenário, vamos parar e constatar nossa realidade: sim, trabalhamos mais do que antes. Sim, investimos 8 a 12 horas diárias entre um ofício registrado, atividades “extraoficiais”, como trabalhar em conteúdo de games/canais/podcasts, e outros projetos pessoais. Sim, o dinheiro é mais suado do que nunca e transpira em nossas carteiras e contas bancárias. E sim, em última instância, estamos todos mais cansados, especialmente quando uma pandemia entra na conta.

Dinheiro GTA V
Dinheiro move o mundo e pode até “comprar tempo” em alguns jogos, como GTA

Isso sem contar o tempo gasto em celular, redes sociais e outras trivialidades que drenam sua energia mais do que você pode imaginar – vícios e mazelas inexoráveis da era em que vivemos. No meio desse amálgama, há o lazer. Quase se esqueceu dele, certo? No qual se embutem games, séries, livros, filmes, jantar, banho e um pouco da humanidade que ainda nos resta para dedicar tempo àqueles que moram conosco, à família, à esposa, ao marido, ao pai, à mãe, aos irmãos, aos amigos. Tudo isso, no melhor dos sentidos, envolve tempo.

Só que games não se igualam a nenhum outro tipo de entretenimento em relação ao uso do tempo. Uma série é dividida em episódios e temporadas e pode ser resolvida numa maratonada de alguns dias. Livros, por sua vez, dependendo do ritmo do leitor, podem ser desfrutados em cinco, seis dias, menos ou mais. Filmes requerem duas horas de agenda. Mas um único jogo pode exigir duas, cinco, 10, 30, 50, 100, 200 horas ou mais.

Diante de todas as circunstâncias acima descritas, o seu poder de escolha se faz mais importante do que nunca. É aqui que você precisa, libertadoramente, eliminar jogos de sua lista a fim de priorizar o tempo naqueles que realmente valem para você. É uma frieza calculista mesmo; é como assistir a um trailer de anúncio, conferir um gameplay e falar a si mesmo: “Ok, isso parece bacana, mas não vou jogar”.

Assassin's Creed IV Black Flag PS4
Jogos da série Assassin’s Creed exigem muitas horas de dedicação

Sem tempo, irmão

Entremeados por tantas opções, fenômeno que também ocorre nos serviços de streaming, ficamos “embriagados” pelo volume. Quantas vezes você não abriu Netflix, Amazon Prime, HBO Max, Disney Plus ou qualquer outro catálogo para rodar, rodar, rodar entre os ícones e, no final das contas, não chegar a uma escolha?

A “embriaguez de conteúdo” é real e, indo além, é um fato científico que tem servido como objeto de estudo aos especialistas. Resumindo o que algumas teses propõem, o nosso cérebro, basicamente, não consegue absorver a quantidade de informações às quais estamos expostos diariamente. Então, temos uma dificuldade incomum para chegar a uma simples decisão do que fazer em nosso (cada vez mais raro) tempo livre.

O que deveria ser um simples comando de apertar “Play” ou começar um novo jogo acaba se tornando um martírio, uma preguiça, uma série de questionamentos: mas será que vou gostar? Vale a pena conhecer? E se a série/jogo/filme piorar depois? É o tipo de gameplay que estou buscando agora?

ELDEN RING
Elden Ring, próximo jogo da FromSoftware, vai consumir almas e tempo dos jogadores

Nessa pausa de hesitação, o consumidor começa a pesquisar sobre aquele produto, checar reviews, análises em vídeo, comentários na internet. E então se inicia toda uma jornada de busca interminável para se assegurar de que aquele entretenimento será 200% satisfatório, de que seu tempo investido precisa valer cada segundo, e seu dinheiro, cada centavo. A pesquisa entra num vórtice e acaba drenando o restinho de energia reservada para o lazer. Você, desolado, vai dormir – sem ter rendido quase nada em seu tempo livre. O processo se repete no dia seguinte.

Portanto, situação similar à dos serviços de streaming ocorre nos games, quando entramos no looping de indecisão e deixamos que isso nos domine a ponto de não consumir nada pela “preguiça” de iniciar. Voltamos ao celular, às barras de rolagem e às trivialidades de rápida absorção.

Sem tempo, irmão. Force a barra, supere a preguiça. Priorize seu entretenimento. Crie uma lista, organize uma agenda, nem que seja por meio de anotação no celular. Tente seguir religiosamente esse cronograma, ciente de que não há tempo para tudo. Infelizmente é isso, mas felizmente você tem controle sobre isso.

Protagonista de Control com as mãos para frente usando algum poder.

Estamos entediados/enjoados de tudo?

A quantidade exorbitante de informações/jogos ao nosso redor gera, conforme mencionado, esse cansaço fora da curva, uma fadiga antecipada por algo que nem sequer começamos. Pela mesmice de conteúdo ou pelo excesso de produtos que se projetam diante de nós, muitos convivem com esse incômodo incutido pelo tédio, pelo enjoo que a embriaguez traz.

E sim, vivemos numa era de “mais do mesmo”, de fórmulas que se repetem, mundos abertos que se reciclam, objetivos que entediam, personagens que se imitam. Estamos “bodeados” sem que possamos nos dar conta disso, do tanto que já vivenciamos nos games. Há espaço para inovação? Sempre, mas as brechas são cada vez mais raras.

Enquanto não há uma solução definitiva para essa inércia de tédio/enjoo, caso você se sinta assim e esteja incomodado com isso, a minha humilde recomendação é variar o conteúdo que você consome. Não está em fase de games? Assuma isso de uma vez e alterne suas atividades: dedique-se a séries/filmes pendentes, leia livros, quadrinhos e revistas – e aproveite para ampliar seu vocabulário nesse processo –, escreva sobre um determinado assunto, faça cursos, envolva-se em afazeres diversificados. O sentimento, confie, vai voltar.

Como diria um pensador: “A saudade é necessária a tudo que vimos e não vimos”.