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O desafio de transformar heróis e franquias queridas

Em tempos de nostalgia, certos ícones podem acabar incomodando mais do que agradando e nem todos estão dispostos a lidar com isso

por Dan Schettini
O desafio de transformar heróis e franquias queridas

Por esses dias tirei um tempo para, finalmente, assistir o mais recente capítulo da franquia Matrix. O quarto filme da série foi bem divisivo e eu já esperava lidar com conflitos internos e talvez esbarrar em algum tipo de decepção, muito mais por um receio de uma possível descaracterização da franquia como essência e talvez por, tanto tempo depois de sua fenomenal estreia às vésperas da virada do milênio, Matrix não conseguir replicar o impacto de suas origens – dificuldade esta que as sequências anteriores já haviam enfrentado.

A missão de Resurrections era amarga por si só: reviver personagens e um universo que, nos dias de hoje, poderia não ser tão provocativo quanto o primeiro foi. Por mais estiloso e cheio de efeitos poderosos que Matrix pudesse ter, o grande lance por trás do longa de 1999 estava justamente no seu roteiro, que misturava filosofia com crítica social, colocando em cheque nossa relação com o mundo em que vivíamos – e viveríamos.

As irmãs Wachowski confrontaram a audiência, criando um desconforto inerente à obra e transformaram Matrix em um dos maiores filmes sci-fi da história, justamente por conseguir nos fazer pensar, a todo momento, se aquele universo poderia ser real – porque, apesar de extremamente ficcional, tudo soava muito palpável e coerente. E hoje, pouco mais de duas décadas depois, segue sendo.

O segundo ponto era o mais evidente: como trazer Neo e Trinity de volta como protagonistas, mantendo-os como os heróis da trilogia iniciada vinte anos atrás? Principalmente Neo, o Superman tecnológico, capaz de lutar e executar toda e qualquer técnica marcial, voar pelos ares e aniquilar todos e quaisquer inimigos, outrora imbatíveis naquele universo.

A resposta? Tirar Neo desse papel.

Matrix 4 simplesmente descaracteriza muito do que representava o próprio Neo dentro da mitologia da franquia. E isso funciona perfeitamente – além de ser, acima de qualquer coisa, MUITO Matrix. Afinal… é da provocação que a franquia gosta.

O quarto capítulo se abstém de amarras e entrega um herói cansado e quase desinteressado em ser o todo-poderoso protagonista do passado. Quase se negando a lutar e se comportar como costumava fazer e repetindo poucos movimentos que remetem aos tempos áureos (e jovens) do personagem. No filme, o compromisso de Thomas Anderson é outro. E com um roteiro repleto de subtexto e ousadia, Lana Wachowski (que dirige Resurrections, desta vez sozinha) entrega uma obra que serve também como uma crítica aos ícones do entretenimento, que parecem, cada vez mais, obrigados a persistir suas imagens e representações, mesmo tanto tempo depois.

Matrix Resurrections
Matrix Resurrections (2021)

Ressignificar o protagonismo de uma obra tão querida é um ato de coragem. Principalmente quando essa transformação passa direto pela veia de seu personagem principal – mais ainda de um ícone amado por uma legião de fãs, sedentos por vê-lo replicar suas peripécias.

E isso não é uma exclusividade do Matrix – e muito menos do cinema.

Enquanto eu refletia sobre essa intensa crítica de Resurrections ao comodismo da indústria do entretenimento em usar seus heróis como bengala para a popularidade de suas novas obras, não pude deixar de traçar um paralelo direto com os jogos eletrônicos.

Nos videogames a coisa fica muito mais intensa nesse campo. O fã definitivamente não está preparado para ver sua obra, seu herói e, principalmente, os seus protagonistas ao avesso.

O chute que pega na veia ecoou na indústria, de maneira memorável, com Metal Gear Solid 2. Com todo o marketing em torno do trailer mostrado na E3 de 2000, que revelava o retorno de Snake aos holofotes, Hideo Kojima e sua equipe subverteram as expectativas no lançamento do game, tirando o idolatrado herói do título anterior das mãos dos jogadores e apresentando uma nova perspectiva na série ao colocar Raiden como o ponto central – e, evidentemente, como o personagem jogável e principal da história.

Não dá para afirmar que Metal Gear foi o primeiro game a bater de frente com o que o fã esperava desta forma, mas certamente este foi um ponto marcante e que, até os dias de hoje, é lembrado com um gosto agridoce por uma grande parcela de entusiastas. O trailer com Snake foi um “clickbait da vida real” e uma grande sacada (há de se concordar).

Um ano após a recepção curiosa de Sons of Liberty, vimos o confronto do Novo x Tradicional em The Legend of Zelda: Wind Waker, onde a Nintendo entregaria um Link absolutamente diferente do que conhecíamos. Fora a notória e diferente direção de arte cartunesca, Wind Waker somava a sua remodelagem visual uma reconstrução no tom e, principalmente, humor de seus personagens – principalmente de seu protagonista. O resultado? Uma repercussão dividida e que demorou para cair nos braços dos aficionados adeptos da franquia Zelda, que hoje tratam o título do Game Cube com muito mais carinho. Afinal, na época, ninguém queria um distanciamento do que foi mostrado em Ocarina of Time. Pegar outra ramificação criativa não era o esperado. Se deparar com um herói modificado muito menos.

Dando um salto na timeline chegamos a 2018, com o estrondoso lançamento de God of War. Aqui, Cory Barlog e seu time preparavam algo ainda mais intenso, principalmente em comparação ao “Toon Link” de Wind Waker. Se antes estávamos acostumados a comandar um intrépido, violento e inconsequente espartano, com músculos de sobra e carisma de menos, no quinto título lançado para consoles domésticos estaríamos de frente para um furação de surpresas.

Kratos viria quase que totalmente refeito. Dos fios da barba à personalidade. Do machado à mitologia. O vingador grego agora carregava consigo o peso da paternidade, junto ao cansaço de quem passou por poucas e boas – tudo isso muito escancarado, sem se deixar ofuscar puramente pelo gameplay.

E a recepção? Divisiva. Fervorosa. Explosiva. E, antes do incontrolável sucesso do jogo, bastante injusta. O fã não queria ver seu herói descontrolado preso às correntes de uma nova premissa. O fã queria o que ele sempre quis: o cômodo.

Um Kratos tranquilo? Um Kratos sem as lâminas do caos? Combate 1×1?
Cadê o hack n’ slash? Queremos o que já tínhamos! Não queremos um barbudo hipster de hamburgueria artesanal!

Isso e muito mais foi o discurso reverberado, até que o título fosse enfim jogado e provasse que, mais do que nunca, o frescor nórdico faria mais do que bem a um personagem quase que defasado e com fortes sinais de cansaço – cansaço este que fora escrachado no péssimo desempenho visto em seu título anterior, o questionável God of War Ascension.

God of War Ascension
God of War Ascension (2013)

Diferente do visto em Metal Gear Solid 2 e Zelda Wind Waker, a mudança de Kratos em 2018 não parecia uma simples ousadia ou tentativa de sair pela tangente. As circunstâncias e a motivação eram outras. God of War PRECISAVA da mudança e teve que, a exaustivas braçadas, nadar contra o seu pior inimigo: o fã. Mas a Santa Monica sabia que tinha em mãos um título poderoso e confiou que daria certo. E deu. Entretanto, ver Kratos despertar não foi uma tarefa fácil para o jogador apaixonado e apegado ao passado – mas que hoje, muito provavelmente, não deve conseguir se imaginar jogando um God of War como nos tempos do PlayStation 2.

O entretenimento e a nostalgia dificilmente deixarão de andar lado a lado. De mão dadas eles são muito poderosos. É mais fácil convencer o consumidor de que um produto tem valor quando ele facilmente identifica traços e elementos que, em algum momento de sua vida, tiveram peso e características capazes de criar memórias. Quando você vê um personagem lendário pipocando na tela de um novo Star Wars é certeza de que ele não está ali apenas para amarrar a trama. Ele é estratégia. Ele é um alicerce. É o vórtex que suga o espectador e ajuda a criar um coquetel de fanservice, segurança e com um gostinho mais do que conhecido.

Assim se domina a audiência.

E assim se deixa de lado o espírito destemido e as possibilidades.

Não há mal em evocar lembranças e muito menos em agradar aqueles que transbordam fidelidade a uma obra. Mas, se tratando de videogame ou mesmo outros produtos midiáticos, não podemos nos permitir o comodismo. Por isso Matrix Resurrections mexeu tanto comigo e me fez mergulhar em um mar de pensamentos, que me fizeram navegar por memórias sobre títulos que me marcaram e ajudaram a inflamar essa chama sedenta por consumir o novo.

Em tempos de fanservice e de sentimentalismo exacerbado, em torno do apego ao passado, precisamos aceitar que nem sempre acordar velhos guerreiros pode funcionar sem uma dose de ousadia. Essa lição é facilmente absorvida através dos novos e terríveis filmes do Exterminador do Futuro ou dos mais do que controversos jogos do Sonic.

Quem sabe o repouso faz bem para despertar o que eles precisam para brilhar novamente. Ou às vezes apenas uma pitada de destemor.