Especiais

A série de The Last of Us precisa ser 100% fiel ao jogo?

Ser inventivo é a chave do sucesso

por Dan Schettini
A série de The Last of Us precisa ser 100% fiel ao jogo?

Adaptar um videogame para as telas de cinema ou TV, como é o caso da série de The Last of Us, não é uma tarefa tão simples, mesmo quando a obra original é calcada em elementos narrativos e uma estrutura que, superficialmente, parecem favorecer uma releitura em outros caminhos do audiovisual. 

Como uma mídia absolutamente particular, transferir as sensações que temos nos jogos para um formato que abre mão de elementos tão essenciais, como a gameplay, faz desse trabalho uma missão complicada. E no meio do caminho dessa jovem história de adaptações, vimos mais tropeços retumbantes do que acertos – estes, pouquíssimos, sequer são unânimes para a crítica ou entusiastas, de forma geral.

Neste último domingo (15), finalmente foi ao ar o piloto da série de The Last of Us. Cercada de grandes expectativas e de “argumentos”, que servem de base para os mais espirituosos serem capazes de colocar fé em seu sucesso, vimos a repercussão ecoar nas redes sociais antes, durante e depois da estreia. Há aqueles que discordam de escolhas pequenas, como a escalação de determinados atores para o elenco, e outros que se apaixonaram e aplaudiram de pé as decisões de roteiro e fotografia, que optaram por replicar sequências do game de forma fidedigna. 

Mas até onde ser uma adaptação 1×1, 100% fiel, é realmente positivo?

Fidelidade x Criatividade: para que lado seguir? 

Antes de tudo precisamos concordar que uma obra não precisa ser totalmente fiel para ser envolvente, bem realizada e, principalmente, criativa. Saber utilizar um universo estabelecido em outras mídias e transportar, de maneira livre, roteiro, personagens e ideias para uma nova trama pode ser, por vezes, um caminho acertado.

Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel
O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, 2001

No cinema, por exemplo, tivemos diversos resultados positivos, vindo de adaptações que não seguiram à risca o que as obras originais apresentaram. Talvez o caso mais emblemático seja da premiada adaptação de O Senhor dos Anéis, dirigida por Peter Jackson. Ao contrário do que possa parecer, de “A Sociedade do Anel” a “O Retorno do Rei”, tivemos diversas mudanças de percurso. Personagens desempenhando papéis distintos, ausências consideráveis e até mesmo um desfecho modificado – para quem leu, sabe-se que Frodo e Gollum não se enfrentam daquele jeito na Montanha da Perdição.

Em outros exemplos mais radicais encontramos obras como Mãe!, filme em que Darren Aronofsky utiliza de polêmicas alegorias bíblicas para contar sua trama, ou mesmo Je Vous Salue Marie, de Godard, onde o cultuado cineasta apresenta uma história que faz uma releitura moderna de uma passagem também da Bíblia cristã – este filme, inclusive, fora proibido no Brasil em sua época. 

A questão da fidelidade como tônica em uma adaptação é importante, mas o foco não precisa ser necessariamente em desempenhar um papel de termômetro, apontando sempre para um caminho evidente e mais seguro. Afinal, a liberdade criativa é um pilar necessário para uma obra se tornar inesquecível. 

Não há necessidade de se levar as mesmas frases, os mesmos trejeitos e repetir de forma perfeita o que já foi feito. O que precisa ser fidedigno é a alma da obra. O coração. E é aí onde a coisa não pode se perder, pois de nada vale um elenco com atores que parecem esculpidos para repetir suas inspirações, ou uma chuva de referências e fanservice, se o resto não está em sintonia com o que faz o fã ser justamente… fã – o MCU que o diga, que está aí há mais de uma década reinterpretando personagens e arcos narrativos, enquanto suga uma audiência avassaladora, sem abandonar suas raízes e sendo absolutamente livre para voar.

No fim, o que importa é o coração.

O caminho seguro pode ser a solução para a série de The Last of Us… a princípio

Dito tudo isso, chegamos a um denominador comum, que assombra a todos nós e que citei no início deste texto: comparar adaptações literárias para o cinema com as adaptações de games é um caso sério. Caso sério porque, oras, podemos contar nos dedos (de uma mão!) as versões cinematográficas que acertaram em cheio, na hora de levar para a audiência um reflexo de obras consagradas dos videogames. Essa é uma barreira que, por vezes, ainda se mostra resistente.

E aí o fã se acostuma a torcer o nariz. E é nessa torcida de nariz que nasce o argumento: basta ser igual ao original. Mas não é bem por aí. Não totalmente.

Ella Balinska em Resident Evil (Netflix), 2022
Resident Evil (Netflix), 2022

É óbvio que a desconfiança paira nestas novas produções. Após fiascos recentes, como Resident Evil (Netflix) e Uncharted (aquele lá com o Tom Holland, quem lembra?) fica difícil depositar crédito. Vendo de forma simplória, fugir da trama original parece ser sempre a pior decisão e fica até difícil defender isso. E, para ficar claro, o meu ponto aqui nem é endossar aqueles que optam por criar algo novo em cima de uma obra estabelecida, mas sim compreender que se limitar a fazer de forma totalmente idêntica é, de certa forma, apenas covarde. Ramificar histórias e explorar lacunas deve ser uma opção – não há mal nisso.

Voltemos então à série de The Last of Us. 

Com o piloto já disponível para os assinantes da HBO, vimos um excelente produto que joga “safe”. Se arrisca pouco, apesar de tentar algumas tangentes em seu roteiro. Por exemplo, a motivação de Joel em encontrar seu irmão – fato este que, naquele momento da trama, não fazia parte da narrativa do jogo.

Joel e Ellie em The Last of Us da HBO
Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey) em cena da série de The Last of Us

De resto estava tudo no seu devido lugar. Pedro Pascal encarnou o protagonista casca-grossa sem dificuldades, assim como Bella Ramsey parece ter nascido para o papel de Ellie. Está tudo nos trinques, como diria vovó.

Mas me pergunto se isso basta para sustentar a longo prazo. Basta? Partindo do pressuposto de que essa série não terá apenas uma temporada e considerando que ela já se tornou uma das maiores estreias da história da HBO, podemos imaginar haver muita lenha para queimar. E seria um grande desperdício se a produção se limitasse a fazer um “copiar + colar” de tudo que conhecemos, apenas por conveniência.

Existem tantas histórias e caminhos que podemos ver no universo de The Last of Us. Personagens a explorar, pequenas trajetórias e nuances daquele universo onde cada pedaço é coeso e capaz de tornar tudo muito crível. E vale frisar: uma das sequências mais poderosas do episódio inaugural – e que não está no game – é justamente a sua fantástica cena introdutória, apresentando com maestria (e doses cavalares de realismo) a intensidade do que está por vir. 

Tudo nesta série aponta para o sucesso. Ela conta com Neil Druckmann, o criador do jogo e um sujeito que saca muito de roteiro, com o universo de TLOU sendo um prato cheio. Fora que a HBO é um verdadeiro colosso em produções grandiosas como essa. 

Torço para haver mais e mais acertos. Que a alma da franquia seja mantida e continue presente de ponta a ponta na série de The Last of Us, mas que a criatividade não seja posta em segundo plano, para não vermos um caminho engessado se desenhar ao longo do desenvolvimento das temporadas que vem por aí. Seja como for, estou otimista.