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Na prática: como a acessibilidade nos jogos pode mudar vidas

Fabricio, Belle e Neto viveram grandes histórias graças aos jogos. Conheça esses exemplos de vidas impactadas pela acessibilidade

por Felipe Negrão
Na prática: como a acessibilidade nos jogos pode mudar vidas

Olá, leitor do MeuPlayStation! Meu nome é Felipe Negrão, sou Coordenador de Operações da AbleGamers Brasil e especialista em acessibilidade. Hoje eu quero falar com você sobre a acessibilidade nos jogos na prática.

Muito se fala do assunto atualmente, o que é algo muito positivo. As discussões são necessárias e assim como qualquer novidade, precisamos conversar sobre e ensinar a todos como ela funciona. Assim como sempre que aprendemos algo novo, a primeira dificuldade é literalmente entender.

Acessibilidade não é diferente. Portanto, nesse texto, vou dar exemplos práticos de como ela muda a vida das pessoas. Vamos conhecer um pouco sobre a Belle, sobre o Fabricio e sobre o Neto.

É difícil acessar as pessoas

Estamos em 2023 e desde o final de 2019 convivemos com uma pandemia. Todos nós fomos afetados, querendo ou não, pela necessidade de se isolar em casa para evitar o contágio. E foi nesse momento onde, mais uma vez, entendemos que como seres humanos, a necessidade de conviver com outras pessoas existe e faz muita diferença para as nossas vidas.

Alguns ficaram doentes, literalmente, por terem que ficar em casa todos os dias. Outras no começo gostaram: agradecendo o tempo a mais que sobrava devido a não pegar mais trânsito até o trabalho, e mergulharam no mundo dos games. Agora, com o avanço dos cuidados para evitar o contágio, podemos sair de casa até sem máscara. Um alívio, não?

Contudo, esse “alívio” não é a realidade de muitas pessoas com deficiência. O dia a dia delas continua sendo de isolamento social, com ou sem pandemia. O motivo? Elas não têm acesso a vida em sociedade como os demais. Seja por uma dificuldade de se locomover, de se comunicar ou de ser aceito como ele é.

A pessoa com deficiência é sempre forçada a se adaptar ao nosso mundo, e esse é o ponto-chave. Através da facilidade de acesso, que são pequenas mudanças nas coisas que usamos e o mundo em que vivemos, essa adaptação é mais natural e beneficia a todos.

Acessibilidade nos jogos ajuda a combater o isolamento social. Mas por que alguém sem deficiência deveria se preocupar? Porque é o certo a se fazer. Vamos a algumas exemplos de pessoas que conseguiram grandes mudanças nas suas vidas, para entendermos como funciona na prática.

Muitos quilômetros rodados

Fabricio Ferreira é assistente administrativo durante o dia e streamer na Twitch à noite. Assim como nós, é apaixonado por games. Outra coisa que ele é apaixonado é por velocidade. Seus jogos preferidos são os de corrida. Eu conheci o Fabricio jogando e depois pessoalmente em eventos de jogos; os quais ele fazia questão de ir para conviver com a comunidade gamer.

Hoje, o Fabricio vai aos eventos como convidado, sobe nos palcos e trabalha como influenciador digital. Infelizmente, quase todos os eventos são em São Paulo, e ele mora em Bom Jesus do Itabapoana, quase na divisa entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo. São mais de 600 km de distância. Fabricio tem atrofia muscular espinhal (AME), uma doença rara que causa a perda da massa muscular e compromete o desenvolvimento do corpo. Ele usa uma cadeira de rodas e possui dificuldades em apertar alguns botões, como os analógicos.

Perguntei ao Fabricio como era a sua vida antes da acessibilidade chegar aos games:

Na época eu tinha mais mobilidade e força, porém ainda assim encontrava algumas barreiras… Uma era a impossibilidade de remapear controles. Gosto muito de True Crime New York, mas os comandos eram desconfortáveis e não tinha como remapear. Em Tekken, eu não podia usar o analógico do controle; fora problemas com Quick Time Events (QTE). Apertar o botão diversas vezes era impossível, e eu precisava pedir ajuda de alguma outra pessoa, o que era bem desagradável.

Quando questionado sobre como os jogos mudaram a sua vida social, Fabricio explicou:

Os jogos sempre foram parte da minha vida, mas com o avanço do online, eles deixaram de ser só uma forma de entretenimento e se tornaram uma forma de socializar. Hoje eu tenho vários amigos espalhados por todo o Brasil e mundo, além disso eu trabalho com jogos e isso só foi possível através das pessoas que conheci jogando. E isso me deixa muito feliz.

Se não fossem os jogos, Fabricio teria mais dificuldade em fazer amigos. É claro que ele ser divertido e uma boa pessoa ajuda. Você pode conferir seguindo-o no Instagram, na Twitch e no YouTube.

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Fabricio tem atrofia muscular espinhal (AME), mas sua vida melhorou graças à acessibilidade nos jogos

Muito mais do que os olhos podem ver

Uma pessoa que se beneficia de opções de acessibilidade nos jogos para deficientes visuais, é a Belle Utsch. Ela tem baixa visão, portanto, possui dificuldades de ver todas as informações na tela enquanto joga. Mas Belle não é uma gamer comum, ela é pesquisadora e especialista em UX (experiencia do usuário) e acessibilidade.

Sua visão dos jogos é de alguém que ao mesmo tempo convive com uma deficiência, possui conhecimento técnico para avaliar as funções acessíveis de um jogo. Belle também se formou no curso Accessible Player Experience (APX), da AbleGamers. O APX é um conjunto de padrões de design, que estimulam os desenvolvedores a perceber e resolver problemas de design relacionados a acessibilidade. A Naughty Dog foi uma das primeiras empresas a usar o APX, durante o desenvolvimento de The Last of Us.

Perguntei à Belle como era a relação dela com os jogos e qual o maior desafio em desenvolver algo acessível para pessoas com baixa visão:

Eu jogo desde criança. Quando fiquei mais velha, comecei a adaptar minha maneira de jogar, usando lupas e aproximando o monitor dos olhos. Em 2020, minha visão piorou e então conheci a AbleGamers e a sua comunidade. Foi como encontrar a minha tribo.

A maior barreira para tornar o mundo acessível é, sem dúvida, a cultura. Sem a convivência com as pessoas com deficiência, os profissionais ficam sem saber como criar produtos e jogos para atender as necessidades. É importante furar a bolha, contratar e envolver os PCDs… Isso ajuda a gerar soluções inovadoras e acessíveis que beneficiam a todos.

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Belle é deficiente visual, mas nunca deixou de jogar videogames

Mas a Belle não fica só na teoria, ela cria conteúdo acessível, faz reviews da acessibilidade de alguns jogos e ainda transmite. Você pode conhecer mais sobre a Belle no Instagram e na Twitch.

Estilo Zarabatana

Como não vivemos no mundo ideal, apesar dos jogos acessíveis estarem em alta, todas a soluções de acessibilidade nos jogos podem não ser suficientes para resolver o problema. Alguém que não consegue usar os braços, por exemplo, não vai poder usar um controle ou mouse e teclado, certo? A princípio, sim. Mas essa pessoa pode usar um controle adaptado!

É o caso do Neto, conhecido como “NoHandsNETO”. Em 2011, Neto sofreu um acidente de moto que causou uma lesão medular, deixando-o tetraplégico. Hoje, ele faz transmissões na Twitch e é professor de inglês online. Mas como alguém como o Neto, que não tem a maior parte dos movimentos do pescoço para baixo, ainda consegue jogar? Não é simples, mas é muito legal: ele possui um QuadStick.

O QuadStick é um controle adaptado feito para ser usado com a boca. Ele possui um stick para usar como analógico, e um sistema em que a pessoa assopra ou puxa o ar para ativar as funções. Não é algo simples de usar, mas funciona em computadores e em consoles como o PlayStation 4. É uma tecnologia avançada, mas feita por apenas uma pessoa nos EUA, na sua oficina em casa. Além disso, não é barato, custando mais de US$ 500.

Conseguir o controle não foi fácil também, segundo Neto: “Eu sabia que existiam tipos de controladores que permitem você usar o mouse com os olhos ou comandos de voz. Eu comecei a procurar, e achei o QuadStick, mas não pude comprar. Pesquisando mais, encontrei um fórum onde uma pessoa falou sobre a AbleGamers. Fiz contato com eles, fui atendido, mesmo assim tive que esperar 2 anos para conseguir o meu.

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NoHandsNETO utiliza um QuadStick para jogar

Como Neto mesmo fala, seu estilo de jogo é o Zarabatana. Com apenas um sopro, de forma ágil, ele é capaz de derrubar seus adversários. Conhecido no TikTok e na Twitch por jogar Valorant, distribui várias “pinadas” em suas partidas.

A pior sensação é a agonia de não poder fazer coisas simples que eu fazia. Não só jogar, mas trabalhar, me relacionar, ou até mandar uma mensagem. Jogo desde os 8 anos de idade, comprava ficha de fliperama com o troco da padaria, como muita gente. Depois do acidente, graças ao QuadStick, eu tenho minha autoestima alta, pois não é fácil. Eu fico muito feliz de jogar partidas ranqueadas igual a todos.

Valorant é um jogo competitivo, que exige resposta rápida. Nem por isso Neto deixa de jogar. Quando perguntei sobre acessibilidade, ele citou suas opções favoritas:

Remapear botão é ótimo, mas a opção de mudar o tiro entre segurar o botão ou alternar com apenas um clique é o que permite uma configuração melhor do QuadStick. Gosto muito quando há opções visuais na tela para indicar sons. Isso é feito para surdos, mas como tenho TDAH, me ajuda a me orientar melhor. E claro, no meu caso, seria bom ter auxílio de mira, como alguns jogos têm quando se usa controle. Meu controle é bom, mas ele não consegue fazer movimentos rápidos na diagonal, o que atrapalha às vezes. O auxílio resolveria isso.

 

@onohandsneto

Não deu tempo, mas fica aí o clipe para vocês decidirem: mesmo assim foi bonito? #QuadStick #AbleGamersBR #Valorant

♬ som original – oNoHandsNETO – oNoHandsNETO

Se não quiser perder mais jogadas como essa e saber mais sobre o QuadStick, não deixe de seguir o Neto no Instagram, TikTok e Twitch.

Acessibilidade nos jogos é para todos

Eu também uso o remapeamento de botões. Como jogo Destiny 2 e Warzone 2.0, acabei remapeando os botões do Call of Duty para ficarem parecidos com os de Destiny. Assim não preciso decorar todas as diferenças. Eu também uso a opção de alternar ao invés de pressionar, mas no caso para quando quero mirar. Assim que só seguro o gatilho quando preciso atirar, descansando minha mão esquerda.

Muitas das opções de acessibilidade nos jogos são coisas simples de se implementar, como legendas. Outra muito útil é poder aumentar o tamanho da fonte, a cor da letra e o contraste de fundo. Esse tipo de opção faz diferença para quem tem alguma dificuldade para leitura.

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Em Fortnite, uma função de acessibilidade se tornou muito popular.Pensada para deficientes auditivos, o jogo informa através de ícones alguns sons que o jogador estaria ouvindo, como passos e tiros. Sabendo a direção aproximada de onde estes sons vem, fica mais fácil antecipar a jogada do adversário e se preparar. Esse tipo de função ajuda todos os jogadores e não torna um jogo online injusto.

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A maioria das opções de acessibilidade nos jogos se tornam coisas que ajudam a nossa qualidade de vida enquanto jogamos. Dicas visuais representando sons, remapeamento de botões e legendas são apenas alguns exemplos.

Acessibilidade é para todos. É importante que cada vez mais opções surjam, pois ela torna a nossa experiência de jogar muito confortável. E claro, quanto mais confortável, jogamos mais e melhor.

Essas opções provavelmente não existiriam se não fosse a necessidade das pessoas com deficiência. Mas isso pode ir além. Atualmente temos mais opções de dificuldade nos jogos, que estão começando a receber funções de acessibilidade, permitindo a criarmos o melhor modelo de dificuldade para cada um de nós.

Compartilhar conhecimento é uma forma de acessibilidade

Cada jogador é diferente, e a acessibilidade permite que todos possam jogar sem que os desafios sejam prejudicados ou descaracterizados. É por isso que ela precisa ser lembrada sempre e, se possível, ser incluída no desenvolvimento dos jogos no seu início.

Por exemplo, talvez você não consiga esquivar ou acertar o comando de parry em Elden Ring ou Sekiro. Se a opção de aumentar o tempo de parry ou esquivar existisse, você poderia ajustá-los conforme o desenvolvedor deixasse. Poderia aumentar o tempo ou até diminuir para deixar o jogo mais difícil. Você literalmente moldaria o jogo conforme a sua vontade ou necessidade.

Mas se mesmo com as opções nos jogos, você é uma pessoa com deficiência motora e precisa de um controle adaptado, não desista. Apesar de não ser fácil, sempre há uma forma de adaptar algum joystick que te permita ter acesso aos jogos. Na AbleGamers Brasil, o trabalho de criação de controles adaptados é o mais procurado.

Mas ainda assim percebemos que muitas pessoas não sabem da existência dessa possibilidade. Então, se você leu nosso artigo especial até aqui, compartilhe com seus amigos, família e demais pessoas próximas para haver chance de uma pessoa com deficiência descobrir que jogar vídeogames é possível.

E claro, não se esqueça de acompanhar o MeuPlayStation, para conhecer mais sobre acessibilidade nos jogos e ficar atualizado com todas as novidades da indústria.